Sobre Cineclubismo - Textos


Carta de Curitiba

(Documento ícone do Movimento Cineclubista Brasileiro, marcou por muito tempo a atividade cineclubista. O tempo 
histórico, que isenta as paixões e cede lugar a razão, reclama pontos de vistas mais aprofundados sobre ele).
DGS
1. O cineclubismo se situa no plano geral do cinema nacional como elemento de divulgação e de formação de público. 
Atuando com preocupação cultural, o cineclube supera os limites comerciais do exibidor cinematográfico e participa 
do trabalho de desenvolvimento do projeto cultural brasileiro. Reconhecendo esse fato básico, a VIII Jornada Nacional 
de Cineclubes considera como dever principal do cineclubismo brasileiro o aperfeiçoamento de formas de divulgação 
do cinema nacional e adota para isso uma clara e definida posição em defesa do nosso cinema.
2. Entendem os participantes da VIII Jornada que cabe também ao cinema nacional a função de intérprete da vida 
brasileira aos níveis de divertimento, de análise e de informação. Tal função, porém, só alcançará resultado eficaz 
através de um trabalho conjunto de todos os setores da atividade cinematográfica. No encontro de novas formas de 
trabalho reside a grande oportunidade do cineclubismo de cumprir produtivamente seu papel específico. A própria 
realização da VIII Jornada constitui-se importante passo nesse sentido.
3. Os esforços de elaboração de formas de trabalho devem partir de uma avaliação tão realista quanto possível da 
realidade nacional em geral e do cinema brasileiro em particular. O caminho que nos levará a essa avaliação está na 
ampliação e consolidação do movimento de cineclubes, na contínua e ampla troca de informações, no constante 
intercambio entre os cineclubes e entre estes e outros da cinematografia. A ampliação do conhecimento mútuo das 
experiências particulares conduzirá necessariamente a um aparelhamento melhor e mais efetivo de todas as estruturas do cinema nacional.
4. Os participantes da VIII Jornada Nacional de Cineclubes, cientes da importância de seu trabalho decisivamente 
criativo no âmbito da cinematografia e decididos a contribuir para o processo de afirmação de cultura brasileira, 
exortam todos os cineclubes a participar ativamente da defesa do cinema nacional, através da aplicação das 
recomendações formuladas neste encontro e que passam a integrar esta Carta de Princípios.
5. Em homenagem ao povo do Paraná e às instituições de sua capital que acolheram a VIII Jornada Nacional de 
Cineclubes decidem os participantes do encontro para esta definição de princípios em torno do cinema nacional a denominação de "Carta de Curitiba".

VIII  JORNADA NACIONAL  DE  CINECLUBES

3º ENCONTRO SUD AMERICANO DE CINECLUBES

TEATRO PAIOL – CURITIBA – PR - DE 02 A 05 DE FEVEREIRO DE 1974

  
Carta do Convento do Carmo
Tese da Proporcionalidade
 
 
Representantes de cineclubes reunidos no Convento do Carmo, em São 
Paulo, domingo último, representando a opinião manifesta de lideranças de
diversas regiões do país, discutiram e provaram a tese a seguir, que será 
apresentada aos companheiros da 25a. Jornada Nacional de Cineclubes:
 
Unidade na luta e proporcionalidade 
 
A 24ª. Jornada Nacional de Cineclubes, em Brasília, deflagrou um período agitado 
de articulação e organização de cineclubes pelo país com diversos graus de 
consistência e alcance. Lideranças esforçaram-se por consolidar projetos já 
iniciados, por iniciar novos projetos e por dar feições mais coerentes ao 
movimento nos Estados da Federação. Todavia, o acúmulo de experiências e de 
energias em nível regional foi insuficiente para dar maior organicidade e 
visibilidade ao cineclubismo nos Estados. É necessáriopois, buscar formas e 
mecanismos de difusão, aprofundamento e enraizamento do cineclubismo nas regiões, 
Estados e municípios, sem o que ele se desenvolverá, sim, mas anêmico e de forma 
dependente das oportunidades de 
ocasião.
 
E se a rearticulação e a reorganização do Movimento Cineclubista em nível nacional já 
pedem o máximo de unidade possível para que se viabilizem, a situação nas baseado 
movimento impõe aos cineclubistas presentes na 25a. Jornada Nacional um esforço
adicional em favor da unidade.
 
A razão de ser da 25a. Jornada Nacional de Cineclubes é reinstituir o caráter 
orgânico do cineclubismo brasileiro. Portanto, o objetivo maior dos cineclubistas 
presentes na 25a. Jornada é reinstituir a organicidade nacional do movimento, o 
que não se fará se não houver a unidade necessária para a formalização da entidade nacional.
 
Unidade, porém, não significa abdicação de pontos de vista, programas ou estratégias. 
Significa, antes de tudo, aprofundamento de discussões com o propósito de atingir 
objetivos comuns.
 
Isso quer dizer que, havendo acordo quanto à entidade nacional do movimento – e 
devemos buscar esse acordo com todas as nossas forças – é inevitável que o debate 
sobre os rumos estratégicos do movimento – e, pelas posições explicitadas nos 
vários grupos de discussão na internet, isso é líquido e certo – resulte na formação 
de programas e de chapas.
 
A disputa entre chapas no Movimento Cineclubista é algo já tradicional, e neste 
momento possibilitará a explicitação de projetos, métodos, parceiros, posturas etc. 
o que é extremamente saudável.
 
Porém, é preciso superar uma prática fratricida muito cultivada em outras épocas: 
quem vencia levava tudo, quem perdia era excluído e marginalizado.
 
Para superar esse vício, propomos que nos estatutos da entidade nacional seja 
consagrado o princípio da proporcionalidade, algo nos seguintes termos: toda chapa 
disputante das eleições para a Direção ou órgãos fiscalizadores da entidade 
nacional que obtiver 10% (dez por cento) ou mais dos votos válidos terá assento em 
igual proporção nos respectivos órgãos.
 
Esse princípio assegura unicidade orgânica ao movimento em nível nacional, impede 
práticas totalitárias e excludentes de eventuais vencedores, ao mesmo tempo em que 
dá voz e confere respeito a posições ocasionalmente minoritárias.

 
Novo Cineclubismo - São Paulo, outubro de 2004.








Manifesto de Rearticulação do Movimento Cineclubista Brasileiro


 

Cineclubismo: olhar sobre telas



Cineclube é a casa do cinema, espaço em que o ir e vir é constante. Ir ver um novo filme, rever um clássico ou voltar ao cineclube porque não foi possível assistir a um filme enquanto ele estava sendo exibido comercialmente, esse é o verdadeiro espírito de um cineclube, que se define também por sua natureza jurídica associativa, supra-religiosa, apartidária, e por seus objetivos essenciais, voltados para o estudo, a preservação da memória, a produção, a difusão do cinema como um todo, em especial o filme nacional do país de origem, a formação de um público ativo, crítico e apaixonado, sem o qual o cinema se torna objeto de consumo ligeiro e descartável.

Cineclubismo é, antes de tudo, movimento: movimento de gente, de idéias, de imagens e sonhos, de iniciativas e esforços em favor da atividade cinematográfica. Desde os primórdios do cinema, registram-se atitudes militantes frente à aventura de constituir nossa identidade nas telas, como não deixam dúvidas as palavras de Humberto Mauro: “Eu tenho fé no Cinema Brasileiro”. Esse movimento de gente, idéias, imagens e paixões – acompanhando tanto as dificuldades que têm marcado a história de nosso cinema – oscila, desde as primeiras décadas do século XX, entre estágios de maior mobilização e organização para fases de dispersão e até mesmo, desarticulação.

Que o digam Plínio Sussekind Rocha, Otávio de Farias, Almir Castro e Cláudio Mello, fundadores em 13 de junho de 1928 do Chaplin Club, primeiro cineclube legalmente constituído no Brasil, a defenderem feroz e um tanto “inocentemente” o cinema mudo contra a inovação do som.

Que o digam os remanescentes e atuantes militantes do bem modelado cineclubismo de fins da década de 50 e 60, desmantelados em 1968 com a edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5) pela ditadura militar, ante suas atividades culturais juntos aos Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes.

Que o digam e reafirmam os novos; bem organizados, e fortemente politizados cineclubistas, que em 1973, sob a ditadura militar, reorganizaram e forjaram o corpo de uma obra cineclubista, com experiências que foram da sala escura à luz do dia, envolvendo cineclubes de todo o território, cada qual com suas especificidades, e que fora palco para experimentações e inovações na distribuição e exibição cinematográfica. A dura luta da sobrevivência sob forte repressão policial, com a sede da Dinafilme, distribuidora dos Cineclubes, sendo invadida por duas vezes pela Polícia Federal, com quase duas centenas de filmes presos. Sem contar outros tantos filmes que foram apreendidos nas estradas, em cineclubes, sindicatos, etc. Em contra partida, filmes das guerrilhas de El Salvador, Peru, Organização Para Liberação da Palestina – OLP, Taiwan e da Erithréia/Afeganistão, dos governos revolucionários de Angola, Moçambique, Nicarágua e Cuba, entravam e eram exibidos nos cineclubes do país afora, com o Conselho Nacional de Cineclubes e as Federações Estaduais comandando tudo. Tínhamos ainda o Secretariado da Federação Internacional de Cineclubes para América Latina e Caribe sediado no Brasil, até a espetacular situação de exibição em cineclube indígena, com projetor 16mm transportado por canoa e alimentado por gerador a combustível. Atividade que, bem no início do século passado, quando o cinema ainda dava seus primeiros passos, não ia além da pura apreciação crítica entre meia dúzia de visionários, que logo a história se encarregou de notá-los.

As duas Cinematecas mais importantes do país, São Paulo e Rio, o restauro dos filmes Limite de Mário Peixoto, Ganga Bruta de Humberto Mauro e, a redescoberta do próprio Humberto Mauro para a história do Cinema Brasileiro, especialmente para o Cinema Novo, são heranças do Movimento Cineclubista Brasileiro, que no limiar dos anos 80, completava mais um ciclo de existência, mas antes, deixava plantada na história, uma tela de luz para o filme brasileiro, criando um circuito que hoje possibilita a sua permanência mais tempo em cartaz e projeção bem cuidada. Esta experiência, iniciada notadamente nos Cineclube do Sindicato dos Jornalistas, Cineclube da GV, Cineclube União, Cineclube do Parque Santa Madalena, Grupo Cineclubista Tietê-Tietê, Cineclube 25 de Abril, Cineclube da Fatec e tantos outros cineclubes do interior e de outros estados brasileiros, e que vieram desaguar no Cineclube Bixiga, deixaram um vácuo no cinema e na cultura brasileira, que é hoje altamente angustiante.

Circunstancialmente, o encerramento dos ciclos de existência de um cineclube causa um dano cultural grave ao cinema e a cultura brasileira. Que dizer então da desarticulação do movimento cineclubista, que priva em larga escala o país de outros horizontes mais largos, porque críticos, para a atividade cinematográfica? A necessidade de uma Tela para o Cinema Brasileiro mais uma vez bate, desesperadamente, às portas de nossas consciências. Recomeçar é uma constante na história do nosso Cinema e na do Cineclubismo.

O debate que se trava hoje em torno do Cinema Brasileiro, poderia ser ampliado também, ou principalmente, para o objeto cinematográfico. No entanto, ele permanece fortemente centrado no viés da produção. Esta discussão precisa por em foco o suporte de sobrevivência da atividade cinematográfica, o espaço simbólico em que a obra filmica se concretiza, o ponto que dá razão de ser a toda estruturação da industria cinematográfica, que é a tela, cuja importância é notada desde o início do nosso cinema, haja vista o fevereiro de 1911, quando aqui chegou uma embaixada de capitalistas estrangeiros para 
“espiar” o nosso mercado cinematográfico e verificar sua potencialidade de investimento. De lá para cá, o cinema nacional nunca mais foi o mesmo.


Hoje o cineasta brasileiro detém os meios de produção de um filme com maestria técnica e estética.  O que lhe falta é o retorno do público.

Se não criarmos uma tela privilegiada para o Cinema Brasileiro, ele nunca dialogará com o seu público, porque o seu público está condicionado a ver o filme estrangeiro – americano -. Sempre que o filme brasileiro chegou ao seu público, eles se entenderam muitíssimo bem,

Reorganizar o Movimento Cineclubista Brasileiro, desarticulado no início dos anos 90 passa necessariamente, pelo estabelecimento de políticas públicas em níveis municipal, estadual e federal, e a aplicação delas devem responder a necessidades de curtíssimo, curto e médio prazo.

O movimento deve estar voltado para: A ALFABETIZAÇÃO DO OLHAR; FORMAÇÃO E ORGANIZAÇÃO DO PÚBLICO; FORMAÇÃO DE QUADROS; DEFESA INTRANSIGENTE DO FILME BRASILEIRO, para que ele permaneça mais tempo nas telas dos cinemas e para que se abra a ele espaços principais na tela da televisão. Estes princípios básicos devem sedimentar o retorno dos cineclubes à cena brasileira, criando definitivamente uma tela privilegiada para ele.

A aplicação de políticas consistentes e respeitosas para com o nosso cinema, sem jogadas de “marqueteiros”, possibilitará em médio prazo, a criação de um Circuito Popular de Cinema nas periferias das grandes metrópoles e nas cidades do interior, oportunizando benefícios à comunidade organizada, propiciará, desde a geração de emprego e renda a benefícios sociais e culturais imediatos. Assim, o nome cineclube não será usado em vão.

Estas atividades devem interagir com outros setores da sociedade, notadamente as Secretarias Municipais e Estaduais de Cultura, a Educação, Meio Ambiente, a Saúde, a Ação Social, Habitação e o Desenvolvimento Econômico.

A inclusão do homem comum no exercício da convivência com a diversidade cultural do outro possibilitará que desse processo permanente de construção coletiva do olhar e conseqüentemente do saber, brotará um novo ser, pleno em seus direitos de cidadão. O homem plasmado na ação do fazer cultural é antes de tudo um mensageiro da paz, animador do convívio social, do respeito ao meio ambiente, enfim, auto da sua própria identidade e co-autor da identidade coletiva.

Um dos pilares da democracia em qualquer nação é o estabelecimento de uma política pública, capaz de incentivar a pluralidade de suas manifestações culturais, nas quais a produção local encontre mecanismos que garantam sua difusão, em oposição à tendência monopolista do mercado, que cria obstáculos para que as particularidades não sobrevivam, que esmaga manifestações comunitárias em favor da “hamburguerização” global, que substitui o indivíduo pelo consumidor, e que despreza o homem como ente histórico, portador de necessidades culturais essenciais, cerne de sua própria identidade. 

Centro Cineclubista de São Paulo
Adesão:
Centro de Estudos Cineclubistas de Brasília – CECIBRA
Núcleo de Cinema e Vídeo “Com-Olhar”
Associação Cultural Curta Circuito – ACINE
Cineclube Butantã
Associação de Audiovisual de Diadema – AVD





Sobre um Pequeno Itinerário Cineclubista



Se a primeira projeção cinematográfica hoje pode ser contestada, que não coube aos irmãos Lumière a primazia de tal façanha, antes, em 05 de novembro de 1985, em Munique, coube ao polonês radicado na Alemanha, Marx Slodovisky, o registro da primeira sessão pública de cinema, o mesmo não se pode dizer dos cines clubs, cujo berço, cabe a França do italiano aí radicado, Ricciotto Canuto e a Louis Delluc, este um francês nato, os fundadores do que hoje chamamos de cineclube.

Por volta de 1911, Ricciotto Canuto, um apaixonado por cinema, foi o primeiro a considerar cinema como arte. Amigo de Picasso, Apollinaire e Stravinsky, ele já naquela época, combatia os inimigos do que denominava de “beleza cinematográfica”. Algo em torno de duas vezes por mês eles reunia os amigos em suas casas, para discutirem os filmes que eram vistos em alguma sala da cidade. Além dos já citados, participavam também dos debates, pintores como Fernand Léger, cineastas como Jean Epstein, críticos como Leon Moussinac.

Lá por volta de 1921, ele cria o “Club dos amigos da sétima arte”.  Até então eles não projetavam.

            No entanto, por volta de 1911/12, um quase cinéfilo, encontra nos filmes de sua época, refúgio para fugir ou curtir sua solidão. No livro “Kafka vai ao cinema”, nos dá conta de uma figura bastante singular, o “explicador”, que neste caso funcionava assim, como uma espécie de “propagandista do filme. Este personagem ficava na porta dos teatros e/ou sala de cinema, anunciando o filme que ia ser exibido. Ao entrar e assistir o filme, nem sempre o que ele, o explicador anunciava, como forma de atrair o público, correspondia com o que era visto na tela.

O termo “Ciné Club” começou a ser utilizado por Louis Delluc, a partir de 1921, nas discussões que freqüentava na casa de Canutto. É a partir de 1922 que as projeções seguidas de debate começam a acontecer nos “Cine Clubs”, por iniciativa de Delluc. A idéia que se pode intuir é que eles começaram a programar o que eles queriam ver e não ficar a mercê do “mercado” exibir um ou outro filme de seu interesse.

Não sei que tipo de contato poderia ter ocorrido entre o grupo de Canutto e Delluc, com o de Maiakovski, fato é que este publica em 1922 o poema “Manifesto do Cinema”: Para vocês, o cinema é um espetáculo. Para mim, é quase uma concepção do mundo... Mas o cinema está doente. O capitalismo cegou seus olhos com um punhado de pó de ouro. Os hábeis empresários o levam às ruas pela mão. Amontanham dinheiro comovendo os corações com argumentinhos...
A idéia entre eles convergem, pelo menos no tocante a repulsa ao caminho que o cinema tomou, como veículo de comunicação com a grande massa.

Louis Delluc, não se restringiu suas atividades, apenas as questões teóricas do cinema e do cineclubismo. Ele escreveu argumentos e chegou a realizar alguns filmes, numa época de grandes inquietações, com a “avant-garde francesa” fervilhando nas mentes e corações. Delluc escreveu dois ensaios “Photogénie” e “Cinema ET Cie”. Dirigiu os filmes “Fièvre”, “Silence” e “La femme du nulle part”. No entanto, sua obra de maior prestígio foi à revista “Cinéa”. Canutto por sua vez, manteve-se puramente na atividade crítica.

Jean-Claude Bernadet analisa duas tendências do cineclubismo em um artigo publicado em 1961, no caderno Literário do Estado, chamado “Do Cineclubismo”, a partir de sua vivência no cineclube “Dom Vital”. Uma parte do cineclube queria não só exibir, mas também produzir, enquanto a outra parte manteve-se só na exibição.

A concepção dos clubes de cinema que chegou ao Brasil, com projeções acompanhadas de debates, coube a outro cineasta francês chamado Charles Léger (desconhecemos se ha algum laço familiar une o pintor Fernand Lèger ao cineasta Charles Léger).

André Piero Gatti, em seu verbete “Cineclube”, publicado pela editora SENAC, SP, 2000, dentro da Enciclopédia do Cinema Brasileiro de Ramos, F. e Miranda, L.F., aponta que “No Rio de Janeiro em 1917, Adhemar Gonzaga, Álvaro Rocha, Paulo Vanderley, Luis Aranha, Hercolino Cascardo e Pedro Lima participavam de um grupo de jovens interessados em cinema. Normalmente assistiam às sessões nos cinema Íris e, depois dirigia até um local conhecido como Paredão”. Apesar de não ter suas atividades registradas, o Cineclube Paredão, pode ser considerado nosso primeiro cineclube. Segundo André, “tais informações foram conseguidas através de depoimento oral do Sr. Adhemar Gonzaga”. Para a corrente historiográfica que não considera a oralidade como uma determinante do fato histórico, em 1º de abril, quarta-feira, de 2010, o Jornal o Estado de são Paulo, Caderno D 2, página 5, publica matéria com Alice Gonzaga, Filha de Adhemar Gonzaga, creditando a Adhemar, a fundação do Cineclube Paredão, como sendo o primeiro do país.

Registrado legalmente, com diretoria eleita e estatuto, o “Chaplin Club” vai ser nosso primeiro cineclube. Fundado no Rio de Janeiro em 13 de junho de 1928, resguardadas as devidas transformações, um modelo seguido até hoje. Sobre ele, assim se referiu Walter da Silveira, em 1965 num texto chamado “A Importância dos clubes de Cinema”, diz ele: “... ainda na fase do cinema silencioso, um “Chaplin Club” no Rio de Janeiro, seu estilo não o fazia realmente um clube de cinema. Era uma sociedade hermética, na qual uns intelectuais de eleição, alguns mais tarde romancistas, políticos e mestres universitários muito admirados, discutiam sozinhos problemas estéticos que depois divulgavam sem repercussão numa pequena revista “O Fan”.

No mundo, com o privilegio de passar em sessão privada o que era proibido ao grande público, os cineclubes se multiplicavam.

Depois do Chaplin Club, abre-se um vácuo na atividade cineclubista brasileira, que será ocupado com o surgimento, em 1940, do Clube de Cinema de São Paulo, fundado por Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado, Lourival Gomes e Cícero Cristiano de Souza. Plínio Sussekind Rocha, em 1946 orienta a fundação do “Clube de Cinema da Faculdade Nacional de Filosofia”. No mesmo ano surge no Rio de Janeiro o “Circulo de Estudos Cinematográficos”, tendo Alex Viany, Moniz Vianna e Luiz Alípio Barros, todos os críticos, a frente da entidade. Em Porto Alegre Paulo Fontoura Gastal, também crítico de cinema funda o Club de Cinema de Porto Alegre, que permanece em atividades ininterruptas. Do final da década de 1940 ao final dos anos 1950, surgem vários “Clubs de Cinema”, tendo invariavelmente um crítico à frente. É o caso, por exemplo, do “Club de Cinema da Bahia”, com Walter da Silveira; Fortaleza com Eusélio Oliveira; o “Club de Cinema de Santos”, com Maurice legeard; o “Club de Cinema de Marília”, com Benedito André e tantos outros. 

As primeiras observações vão apontando algumas mudanças sutis na evolução do cineclubismo. Os club de cinema de alguma faculdade, invariavelmente, filosofia, vão cedendo lugar para os “clubes” de cinema. A grafia da palavra “cine club”, vez ou outra aparece única e não composta, cineclube. Nos texto de Paulo Emílio ela aparece junta com mais freqüência, do que, por exemplo, nos textos de Jean-Claude Bernadet.

A fase que inicia o processo de mudança dos “clubs de cinema”, criticados como elitista, mais voltados para a discussão teórica da obra de arte, final dos anos 1950 e início dos 1960, para a etapa do cineclube, mais popular (1), mais voltado para a difusão da obra cinematográfica. Ela é interrompida em 1968, com a edição do AI-5. A ditadura militar entra em sua fase mais repressora e mesmo sob ela, o movimento se reorganiza. A entidade nacional é reorganizada, tendo como presidente, Carlos Vieira, um dos baluartes do cineclubismo, da fase dos “Clubs de cinema”.

Após a reorganização de 1974, o movimento cineclubista que já vinha numa curva ascendente, assume posição estratégica ideológica e privilegia a exibição, tendo a distribuição, como braço tático de sustentação desta posição. A partir de então, embora os clubes de cinema permaneçam atuando e gozando dos mesmos direitos estatutários dos “novos” cineclubes. A “Democracia Interna” destes passa a formar mais um pilar cineclubista. Hoje este conceito precisa ser revisto, até porque, sua prática é muito pouco ou quase nada é exercida.

Agrega-se outra coluna de sustentação ao cineclube, não ter a entidade finalidade lucrativa. Outras questões vão dando acabamento a esta obra chamada cineclube em processo permanente de construção, que são: não ser apartidário, areligioso ou incentivar qualquer tipo de discriminação. O cineclubismo encerra ainda outros adereços fundamentais, que o torna mais fascinante. Cineclube tem que ter compromisso com o cinema e principalmente com o seu país; cineclube tem que ter compromisso com a cultura e com as manifestações culturais de sua gente; cineclube que não exercita a democracia, deve ter outros interesses estranhos à atividade cineclubista.

A retomada que está ocorrendo no seio do Movimento Cineclubista Brasileiro hoje, terá que levar em contar o processo de evolução da realidade social que vive o país. Questões como, produção, formação de quadros, ampliação da representação da base do cineclube, novas formas de organização e representação que comporte mais de uma visão e até mesmo representação estadual e federal, não podem ser enfrentadas, sob pena de sua atividade não encontrar eco com seus interlocutores.


Diogo Gomes dos Santos

Autores consultados:
George Sadoul, Paulo Emílio Salles Gomes, Jean-Claude Bernadet, Alex Viany, Walter da Silveira
(1)    Com o surgimento da estética “Cinemanovista”, cujos cineastas em sua imensa maioria eram oriundos da atividade cineclubista, o cineclubismo ganha espaço junto ao  movimento popular, com os Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes, afastando-o cada vez da prática até exercida pelos Clubes de Cinema.








UMA JOGADA DO PRETÉRITO MAIS QUE PERFEITO

Novembro de 1981; Rio de Janeiro; casa de Nelson Krumholtz, então presidente do Conselho Nacional de Cineclubes; reunião da diretoria do CNC. Uma das decisões: mandar um representante ao 2º Festival Internacional de Cinema de Havana. O escolhido: este que vos fala, então administrador nacional da Dinafilme (a distribuidora vinculada ao CNC).

Por que alguém da Dinafilme? No Festival funcionava um mercado voltado para a produção independente, com filmes que nunca viriam para o Brasil, por falta de interesse dos exibidores. Havia, ali, muitas possibilidades de negociação, incluídas trocas de cópias.

A idéia de nossa participação foi do amigo Cosme Alves Neto, que era uma espécie de “embaixador informal” do nosso cinema em Havana. Conservador da Cinemateca do MAM/Rio, entre outras qualidades ele tinha o bom trânsito entre cineastas do Brasil, da América Latina e em Cuba. Seus argumentos: a Dinafilme distribuía Vento contra, de Adriana Mattoso, que fora selecionado para o Festival; filmes como Greve, de João Batista de Andrade, que estava com exibição restrita aos cineclubes, não pode concorrer à seleção do festival e não poderiam ser negociados com o exterior por vias “normais”; lá, poderíamos contratar e/ou trocar filmes que nunca chegariam aqui, como os feitos pela guerrilha de El Salvador, pela Frente Sandinista de Libertação Nacional, da Nicarágua, etc.; haveria lá também, um Encontro de Cineclubes da América Latina, presente o secretário-geral da Federação Internacional de Cineclubes – FICC.

São Paulo, outra reunião. O vice-presidente do CNC, que não estivera na reunião no Rio, considerando que “eu não tinha experiência bastante para encarar sozinho uma missão como aquela”, propôs que eu tivesse sua companhia. A diretoria concordou e Felipe Macedo, integrou-se à nossa mini-delegação.

Instruções de Cosme: para todos os efeitos, estaríamos para o Panamá, onde, depois de três dias – se tudo corresse bem –, receberíamos um salvo-conduto para entrar em Cuba (país com o qual o Brasil não mantinha relações diplomáticas); todo material que levasse – câmeras, filmes, etc. – teria de ser declarado na alfândega do aeroporto internacional de Guarulhos, ou, na volta, tudo ficaria preso (tudo mesmo, os equipamentos e nós); na delegação brasileira estava, entre outros, Paula Gaetán, a viúva de Glauber Rocha, a quem o Festival homenageava naquele ano. Os cubanos adoram Glauber, disse Cosme, têm todos os filmes dele menos o Di. E querem muito vê-lo. O filme além de premiado em Cannes, fora proibido pela família do pintor; sem Di, a retrospectiva Glauber, ficaria incompleta. No mais, era chamar todo mundo de compañero, trocar dólares só no câmbio oficial, tomar cuidado com os gusanos, etc., etc.

Tratei de mobilizar meus contatos, para levar filmes brasileiros para eventuais trocas. Um “pequeno” problema: muitos dos filmes distribuídos pela Dinafilme não tinham Certificado de Produto Brasileiro. O Certificado de Censura era Especial para Cineclubes e Cinematecas. Lembrei-me, então, de uma cena que presenciara certa vez, na sede da Dinafilme.

Um dia, Sílvio Back, o cineasta de Guerra dos pelados, de Aleluia, Gretchen, de Rádio Auriverde e tantos outros, entra na Dinafilme e me pediu para ver Pátria redimida, filme feito por Matheus Growf sobre a passagem pelo Paraná das tropas comandadas por Getúlio Vargas, em 1930. Peguei o filme na prateleira e pedi a Sílvio que aguardasse um momento, enquanto eu montava o projetor.

- Não precisa, ele disse, eu vejo assim mesmo.

- Eu monto o projetor rapidinho, insisti, sem jeito.

- Não precisa, disse ele.

Sentou-se numa cadeira com uma mesa ao lado, desenrolou o filme e, na contra luz que entrava pela janela, começou a vê-lo.

- Estou fazendo uma pesquisa e é melhor ver o filme assim.

Depois de vê-lo todo “assim”, a olho nu, Sílvio começou a enrolá-lo – manualmente – de novo no carretel, e só restou oferecer-me para enrolar o filme via enroladeira. Nunca vi, nem antes nem depois, alguém ver um filme dessa maneira. Daí a idéia de como sai do país e entrar nele com os filmes que quisesse e com as bênçãos da Polícia Federal.

Reunidos os filmes que queríamos levar, inventei uma programação só com material do antigo Instituto Nacional do Cinema – INC; eram filmes distribuídos de graça pela EMBRAFILME, todos com os devidos certificados de Censura e de Produto Brasileiro; a duras penas, consegui também uma cópia do Di, sob várias condições, a principal: não exibir publicamente (caso contrário, cabeças rolariam dentro e fora da Embrafilme). Com cópias autenticadas dos certificados, uma semana depois, devolvi “todos” os filmes. Rebobinados em batoques, nossos filmes e o Di foram colocados em sacos de plástico preto e “identificados”, com rótulos que consegui na filial paulista da EMBRAFILME. Na Policia Federal, declaramos que participaríamos de um festival de cinema universitário, no Panamá, com aqueles filmes do governo brasileiro. Mas o mais difícil ainda estava por vir.

Aeroporto de Guarulhos com o passaporte na mão, o agente da Polícia Federal pergunta:
– Destino?
– Panamá.
– Panamá?
– É. Panamá.
Depois de uma pausa teatral, ele:
– Visitar familiares, parentes?
– Não. Estou de férias e vou participar de um festival de cinema.
Ele, com um sorriso maroto:
– Panamá... desculpe, você está de férias e vai para o Panamá!
- Eu mudo...
- Não me recordo de ninguém que eu tenha encontrado aqui, que sai de férias e vai para o Panamá.
Eu ficando verde, amarelo, sei lá, ele insiste;
– Panamá?
Mudo estou, mudo fico e ele prossegue com sua “rotina”:
– Profissão?
É a minha chance de sair do sufoco, penso, já sentindo que a coisa não está funcionando, respondo.
– Animador cultural.
Cabeça baixa, novamente o sorriso maroto, ele me olha por cima dos óculos por um tempo interminável, balança a cabeça, levanta-a e me encara:
– Desculpe. Não entendi.
Estou congelado. Ele pergunta:
Você pode me explicar o que faz um “animador cultural”?
Vou dizer que promovo sessões... Promovo não é uma palavra boa. (Sabe quando você não quer dizer uma coisa, e quanto mais você se explica mais afirma aquilo que não queria dizer? Cineclube, na época, era sinônimo de subversão).
– Eu passo filmes... em escolas, clubes...
(Sinto-me gago e manco.)
– Passo filmes... em empresas... cineclube...
– Cine o quê?
– Cineclube.
– Cineclube passa filmes, debate; é isso, não é?
– É.
- Eu já ouvi falar. Tá bom, seu Diogo. O senhor é animador cultural e está indo de férias para o Panamá. Ritualmente, como quem sabe que há algo errado, mas acha que talvez não valha a pena continuar, ele carimba o passaporte, fecha-o e estende para mim, quando vou pegá-lo, o segura ainda um pouco e diz:

– Boa viagem, e boas férias.

Afasto-me dali, com a sensação de quase ter sido pego fazendo o que não devia, de ter escapado só por falta de provas, como se ele tivesse dito: “sei quem você é, sei o que você vai fazer, e não é o Panamá seu destino”.

Ala internacional do aeroporto da cidade do Panamá. Enquanto aguardávamos a chamada para embarque, eu filmava em super-8; finalizei um plano no Cosme, já vestido com sua guayabera e fumando um charuto – cubano, claro.

- Agora faz um plano dos aviões, ele disse, apontando o pátio lotado de enormes aeronaves de companhias internacionais. Lá no fundo, meio que escondidinho, vi um aviãozinho acanhadinho, desses, próprio para vôos domésticos, com a identificação: Cubana de Aviación. Um avião Tupolev, fabricado na URSS. Deviam caber uns três daqueles dentro do DC-10 da Varig.

- Tá vendo, disse o Cosme, nós vamos naquele lá. O Cosme tinha um senso de humor incrível.

No avião não parava de entrar gente, parecia desenho animado. Naquela coisinha apertada havia um misto de confusão e confraternização (todas as delegações sul-americanas estavam na mesma situação, “de férias no Panamá”, e quase todo mundo se conhecia). Logo evoluiu para empolgada comemoração, em que os compañeros e as compañeras comissários e comissárias tentavam botar alguma ordem.


De repente, fez-se um silêncio de gelar a coluna vertebral: entraram no avião uns passageiros vestidos com uniformes militares camuflados, que atravessaram o compartimento de passageiros e se sentaram em bancos separados, lá nos fundos, meio que se escondendo, trêmulos e molhados de suor. O compañero comandante aproveitou para informar que o vôo estava atrasado, mas os procedimentos de decolagem já iam começar.

Às primeiras manobras pela pista, todos ao mesmo tempo pareceram se dar conta de como o aviãozinho estava sobre carregado, pesado, antes mesmo da compañera comissária e pedir a todos: permanecessem em seus lugares! Finalmente, levantamos vôo.

Desafivelados os cintos de segurança, surgiram comentários sobre as – felizmente passadas – dúvidas quanto se o avião conseguiria decolar e, conversa daqui, conversam dali, outros se foram levantando e formando rodinhas “temáticas”. A compañera comissária, àquela altura atarefadíssima com solicitações de passageiros mais interessados em um affaire com aquela – estonteante beldade afro-latina – que necessitados de alguma ajuda, pediu-nos a todos que evitássemos aglomerações nas laterais, na dianteira ou na traseira do avião, que poderiam provocar turbulência ou mesmo perda de controle do avião.

Mas quem poderia esperar para saber o que cada um dos companheiros andavam fazendo, ter talvez notícias de exilados, desaparecidos, da ação dos grupos de resistência às ditaduras sob as quais estava a maior parte dos países sul-americanos. Dentro do avião, a insubordinação reinou e a cabine virou uma feira. Na traseira, onde estavam concentrados os brasileiros, alguém deu de cantar Meu caro amigo, de Chico Buarque, foi juntando gente, começaram um pulinhos e passos tipo “coca-cola com vatapá” e o avião entrou no samba. Dessa vez, foi o compañero comandante em pessoa quem veio e deu-nos uma solene bronca.

Todos de volta a seus lugares, a certa altura revelou-se, de ouvido em ouvido, a identidade dos passageiros de uniforme camuflado: eram guerrilheiros salvadorenhos e cubanos que tinham sido resgatados e estavam sendo levados “a salvo” para Cuba. Daí a pouco, o compañero comandante anunciava:

– Señores pasajeros, bienvenidos. Ahora estamos bajo la protección del espacio aéreo cubano.

Alguns se levantaram, outros aplaudiram, alguns punhos cerrados ergueram-se, alguém olhou pela janela e apontou:

– Aquela serra... um dos “camuflados” esclareceu:

– La Sierra Maestra está en otro lado de la isla, al norte. Estamos entrando al territorio cubano desde el sur.

O comandante dava informações sobre Cuba e, vez ou outra, dizia de qual lado do avião era possível ver isso ou aquilo, mas a compañera comissária sempre nos lembrava de que os que estavam em um lado não podiam se levantar para olhar pelas janelas do outro lado.

Notamos que o avião voava baixo antes mesmo de serem anunciados os preparativos para aterrissagem, e a dúvida voltou às cabeças: com todo aquele peso, não teríamos problemas na descolagem? Sérios, muito sérios, os comissários repetiam os procedimentos para o pouso.

O ar condicionado não dava conta, o calor era infernal. Reinava um silêncio digno de Sam Peckimpah, Em bom português do Brasil, estávamos todos com o c... na mão quando o chão começou a se aproximar mais e mais perto... De repente, suave como uma pluma, o avião pousou e deslizou na pista, soou uma salva de palmas, os comissários pediram silêncio para que todos permanecêssemos em nossos lugares até a completa parada da aeronave.

Logo ele anuncia:
– Señores pasajeros, sean todos bienvenidos al Aeropuerto Internacional José Marti, de La Habana, Cuba, territorio libre de nuestra América. Aplausos, cumprimentos, euforia. Todos queríamos ser o primero a sair do avião. Enfim, saímos como se deve e pisar aquele chão, naquele momento, foi como pisar num solo  sagrado e é!

No festival havia gente do mundo todo, bonita, animada, e os filmes!.. Da guerrilha salvadorenha à produção independente dos EUA, passando pelos movimentos de libertação da África, pelo novo Vietnã; enfim, coisas que só lá mesmo poderíamos ver. Os documentários de Santiago Alvarez, um dos melhores do mundo no gênero, fundador do ICAIC... Todo mundo queria ver o nosso Greve – nossas sessões atraíam cada vez mais gente – e, antes dele, passamos Zézero, filme mais do que radical, único, do mais marginal dos cineastas do Cinema Marginal, Ozualdo R. Candeias. Fernando Birri, se não o maior um dos maiores documentaristas do mundo, veio cumprimentar-nos por mostrá-lo. Ali começaram as trocas, principalmente com a Zafra A. C., distribuidora independente ligada aos cineclubes mexicanos e produtores independentes que tinha todos os filmes das guerrilhas do continente.

No campo cineclubista, o Brasil também atraiu atenções; em nenhum outro lugar do mundo o cineclubismo estava tão próximo dos movimentos populares, com experiências em sindicatos, associações comunitárias, e tínhamos muito que contar. E, se o Movimento Cineclubista Brasileiro já tinha um papel importante na luta pela democratização do país, isso ficou ainda mais evidente com a eleição de Felipe Macedo Secretário para a América Latina da FICC. Junto com o cargo, recebemos a incumbência de realizar o 2° Encontro de Cineclubes Latino-Americanos e do Caribe, que aconteceu no ano seguinte, dentro da 16ª Jornada Nacional de Cineclubes, em Piracicaba, e foi também o 1° Encontro de Cineclubes de Países de Língua Portuguesa.

Certo dia, após a exibição de História do Brazyl, de Glauber em parceria com Marcus Medeiros, eu disse a Cosme que iríamos passar, em 16mm, Di. Cosme apresentou-me, então, a Héctor García Meza, diretor geral da Cinemateca de Cuba, com quem acertei a troca de Zézero por Que se ván, filme de Estela Bravo sobre a invasão da embaixada do Peru, premiado no festival, e a doação de Di à Cinemateca. Deve existir até hoje, nos arquivos da extinta Embrafilme, um processo para saber onde foi parar uma cópia não devolvida do filme em questão.

Assim como Zézero e Di, cuja exibição foi uma das mais concorridas do festival, Eles não usam black-tie, de Leon Hirszman, conquistou os cubanos; acabou levando o Gran Prémio Coral. De outro premiado, como melhor documentário, La decisión de vencer, um recado da guerrilha de El Salvador, eu já tinha uma cópia na mala.

Uma pergunta não calava: se, na volta, a polícia prendesse os filmes trocados, quem iria ressarcir a Dinafilme pelas perdas? Estava implícito que fazer as trocas fora uma decisão isolada do administrador geral da Dinafilme, que, apesar de ser do conhecimento da diretoria do CNC e apenas dela, representava, mais que um risco, um quase suicídio.

Na noite de encerramento do festival, lá estava eu com minha super-8 quando alguém se dirigiu a mim e disse qualquer coisa como “cracov catacovief maletacov sacovit”. Era russo! Tradução: “o homem com uma câmera”, Dziga Vertov que me perdoe. Agradeci.

Aeroporto do Panamá, de volta. O clima mercantilista de natal violentava o “espírito revolucionário” adquirido ou avivado em Cuba. Dessa vez, a conexão foi imediata e, no DC-10 da Varig, aquela imensidão, passavam os filmes made in USA mais babacas possíveis, no canal de áudio se podia ouvir tudo quanto era tipo de música... em suma, estávamos de volta as “maravilhas do capitalismo”.

Já em Cumbica, depois de pegarmos à bagagem aguardava-nos uma longa fila. Era a temida alfândega. Meia dúzia de agentes selecionava “figuras” para serem revistadas, e é claro que, o cabeludo de trancinhas, fui um dos escolhidos, além de um barbudo que vinha um pouco atrás. A mala do “barba” foi apenas apalpada; na mala dele nada, na minha, tinha tudo, eles logo viram os filmes, aquele monte de filmes, reviraram tudo e perguntaram de que se tratava. Como não tinham como projetá-los e não eram o Sílvio Back quem estava lá, tiveram que acreditar naquela história de filmes do governo e festival no Panamá e nos documentos que apresentei dos certificados e dos filmes do Instituto Nacional do Cinema - INC e uma relação com o nome deles em papel timbrado da Federação Paulista de Cineclubes.



Assim, o Movimento Cineclubista Brasileiro trouxe ao público filmes que, de outro modo, jamais teria visto, e fez chegar a Angola, Moçambique, México, Cuba, Peru, Venezuela, filmes brasileiros cuja exportação a ditadura jamais permitiria. Hoje, com toda a democracia que temos, filmes como aqueles, não chegam aqui, e os filmes que o Brasil exporta são não mais os aprovados por uma ditadura política, mas os que atendem à ditadura do mercado.

Aquela viagem, de certo modo, foi o início de um capítulo na história do Movimento Cineclubista Brasileiro, que acreditava, então, no cinema como instrumento de mobilização popular e, mesmo sofrendo retaliações como a invasão da Dinafilme e a apreensão de seu acervo pela Polícia Federal, nunca deixou de lutar pela democracia e por uma vida mais digna para todos os brasileiros.

Diogo Gomes dos Santos