domingo, 1 de abril de 2012

Recorro a ficção para contar alguns episódios que acho significativos da memória da luta dos cineclubes, tanto em defesa da liberdade de expressão, como pelo Cinema Brasileiro. Como não temos um acervo memorial ou algo parecido, até mesmo num texto como este, faltam a informação precisa, por exemplo dos nomes dos cineclubistas que foram detidos pelo DOPS. A homenagem fica genérica, mas a intenção é homenageá-los todos os envolvidos e em consequência, o conjunto do Movimento. Fica o alerta para a necessidade de organização, prevenção e divulgação da memória do cineclubismo.

Boa leitura...





A delegação Capixaba chegou a Sampa umas seis horas adiantada, rumo a 15ª Jornada Nacional de Cineclubes, que se realizaria em Campo Grande, em 1982. O Conselho Nacional de Cineclubes – CNC - havia conseguido, junto ao governo do Estado de São Paulo, passagens de trem até Campo Grande - então pertencente ao Estado do Mato Grosso -, para as delegações que, para chegarem até lá, tivessem São Paulo como rota.

Os Capixabas resolveram conhecer a Boca do Lixo, foram ao famoso Bar/Restaurante Soberano e ao Bar do seu Ferreira, onde em ambos, se reunia a fina flor do cinema paulista “pornochanchadeiro”, além de críticos, estudantes, pesquisadores, carregadores de filmes, pretendentes a diretor, produtor, ator, atriz, além das “moças e os moços” da boca. Eles conheceram também a Polifilmes, uma distribuidora, que para alguns cineclubistas, apesar de reunir o melhor e maior acervo de 16 mm sobre a história do cinema mundial, diziam: “só tem cópias velhas, caindo aos pedaços”. No mesmo prédio, no andar de cima onde ficava a Poli (como também era conhecida a distribuidora), fica a CIDEF (nunca soube o significado da sigla), distribuidora do senhor Borghetti, que só distribuía filmes russos, xodó dos cineclubistas.

Na Rua Vitória, do lado direito no sentido da Av. São João, conheceram a Triunpho Equipamentos cinematográficos Ltda, empresa familiar do senhor “Alison” pai, que fabricava projetores de 35 milímetros (mm) e tinha construído uma versão de um projeto híbrido, tipo dois em um, 16 e 35 milímetros (mm), que diziam ser uma maravilha! Tudo bem que não funcionou no Cineclube Bixiga, mas isso é outra história.

Os Capixabas também conheceram a filial da Empresa Brasileira de Filmes S.A. – Embrafilme, que ficava, na época, na esquina das Ruas Triunfo com Vitória. Dobraram a esquina, do lado esquerdo, sentido da Av. São João, e conheceram a gráfica Cinelândia, que ficava ao lado da Embrafilme, pela Rua Vitória. Era lá que se imprimia a maioria do material gráfico dos filmes da Boca; da revista “Cinema em Close-Up” e vez ou outra, alguma material dos cineclubes.

No quadrilátero que compreende as Ruas do Triunfo, Vitória, Andradas e a dos Gusmões, existia a Oficina do Souza, que, consertava, vendia, “gambiarrava” filmes de todos os tipos e formatos; projetores, lâmpadas, coladeiras, carretel, enfim, de tudo um pouco desta seara... Mas, naquelas ruas e principalmente na dos Andradas e Gusmões, os puteiros funcionavam que eram uma beleza, até porque, naquele tempo, um momento de vadiação com uma daquelas “donas”, a gonorréia era certa, mas, bastava uma injeção de Penicilina no bumbum ou no braço e pronto, finda a dorzinha, o cabra já estava pronto para outra. Tempo havia para um ou outro Capixaba, também renovar os ânimos, mas...

Lá pelas tantas, entram apavorados na sede do CNC, salas 84 e 85, da Rua do Triunfo, 134, Edifício Soberano, aonde em todos os andares daquele prédio, que chega até o 12º andar, funcionava uma empresa que tinha alguma ligação com o cinema. Lá funcionava também a Oficine, empresa mecânica de conserto de projetores e outros babados, dos cineclubistas João Luiz de Brito Neto e do Cacá Mendes, até as multinacionais, tipo Columbia; aquela que faturou alto com a distribuição nacional e internacional de “O Cangaceiro” do Lima Barreto, filme produzido pela Vera Cruz, cujos lucros, dizem as línguas afiadas “se a Vera Cruz tivesse recebido a sua parte do lucro que o filme rendeu, a história dela, do Lima Barreto e porque não do Cinema Brasileiro, seriam outras.


Voltando aos Capixabas: um deles entrou correndo e apavorado na sala do CNC quase gritando:
- Pessoal, a policia prendeu o pessoal!!! Todos ficaram paralisados, mudos.
- Foram todos levados para a delegacia!
- Como é que é?
- Os cineclubistas foram presos por uns caras à paisana...
- Como assim, foram presos à paisana? Éééé, como é mesmo o teu nome? Então, conta aí com calma o que aconteceu.
- E que estávamos andando por aí... Como já foi dito, até chegarmos ao Largo General Osório; ai vimos aquele prédio de arquitetura maravilhosa, começamos a fotografar e aí, o pessoal do cineclube da Arquitetura da UFES, sentou na calçada e começou a desenhar e fotografar o prédio. De repente, assim do nada chegaram uns caras, vestidos à paisana, dizendo que eram da polícia e levaram o pessoal preso. Estão lá... Presos!
- Puta merda, aquele é o prédio do DOPS – Departamento de Ordem Pública e Social -, do Estado de São Paulo. É ali onde ficam os presos políticos, as salas de tortura, onde fica o Fleury (Sérgio Paranhos Fleury), ali é o inferno, é o órgão de repressão da Ditadura, caralho! Caralho! Três vezes caralho! ... Que horas são?
- Duas horas, quer dizer quatorze horas.
- Duas horas? Ai meu Deus, fudeu! O trem parte às quatro e trinta. É o seguinte: Chama o Gouveia (advogado). Chama o Arnaldo (advogado). Liga pro Goldmam (Alberto Goldmam, Deputado Estadual), liga também pro Resky (Antônio Resky, vereador). Liga pra imprensa, fala com Orlando Fassoni da “Folha de São Paulo”; com o Edmar Pereira do ”Jornal da Tarde”; com a Pola Vartuck do “Estadão”; liga para todos os jornais. Liga para as rádios... O desespero começou a tomar conta de todo mundo que estava na sala. Ali, não parava de chegar gente. Todos iriam pegar o trem da Santos Jundiaí que partia da Estação da luz, rumo a Bauru e de Bauru, fazia a baldeação e pegava o “Trem da Morte”, que passava por Campo Grande, com destino a Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia. Corre daqui, corre de lá e a porra do relógio disparou o tempo...

Chegou o primeiro informe, o Ricardo (Ricardo Araújo), diretor do CNC (acho que era vice-presidente) e Secretário da Federação Paulista, que fazia Ciências Sociais na USP, filho de um general lá de Brasília, foi até o DOPS para saber o que de fato aconteceu. Ah! O Ricardo era também o cara que, quando precisava redigir algum documento ou programa de alguma chapa, era só falar com ele, que tirava da manga, num curtíssimo espaço de tempo. O cara era o cara... Inteligente, escrevia que era uma coisa... Bom, o Ricardo volta e informa que eles foram presos porque estavam desenhando e fotografando o prédio, “numa atitude suspeita”. Resultado: iriam ficar detidos para interrogatório e averiguação. Ficar “detido para interrogatório, por atividade suspeita”, significava não saber quando o interrogatório iria acontecer. Podia levar uma hora, um dia, uma semana, um mês, um ano e até mesmo, nunca mais se saber dos presos. Eles podiam simplesmente, se escafeder, sumir, de-sa-pa-re-cer...

Atenção pessoal, o negócio é o seguinte, agora são três e meia: Uma parte do pessoal vai para a Estação e segura o trem, só partimos todos juntos. Não temos como conseguir transferir estas passagens para outro dia ou horário. O Gouveia foi com o presidente da Federação Paulista ao DOPS, tentar liberar os cineclubistas. Gouveia, António Gouveia Júnior, Jornalista, advogado, cineclubistas, veja mais sobre ele em: www.cineclubebrasil.com.br foi o advogado dos cineclubes. Ele cineclubou também advogando, criou Leis, orientou cineclubistas, defendeu, redigiu Estatutos, Regimentos Internos, enfim, deu forma jurídica e sedimentou toda a estrutura do Movimento Cineclubista Brasileiro e lá foi tentar explicar para a polícia da repressão/DOPS quem eram aqueles garotos inocentes e o que estavam fazendo.

A notícia só sairá nos jornais do dia seguinte, isso se o texto - denúncia chegar à redação até às dezesseis horas. O objetivo é liberar os cineclubistas agora, para irem para a Jornada, caso contrário, a delegação Capixaba, em solidariedade vai ficar até soltar os companheiros. Então ninguém vai pra Jornada, gritaram uns, depois outros, depois... Pronto, já tínhamos uma palavra de ordem, discursos inflamados, uma multidãozinha disposta a enfrentar “os home” da repressão...
O clima estava muito tenso, fazia um calo da gota. Alguém perguntou:
- Os companheiros conseguiram falar com algum deputado? Outro dá o informe:
- Ta chegando o pessoal da Bahia, alguém explica o que está acontecendo para os companheiros? A delegação baiana neste tempo era só uns gatos pingados, dizia, em outro contexto, certa personagem, provocando a liderança Soteropolinatona.
- Pessoal, silêncio, por favor, o companheiro vai dar um informe: Olha pessoal, o chefe da estação disse que não dá pra atrasar a saída do trem não...
- Caracas meu!
- Algum informe novo da polícia? Assim, naquele misto de confusão e tensão muito próxima do caos, procurava-se um encaminhamento que ordenasse os acontecimentos e fôssemos para a Jornada. Este era, agora, o outro objetivo. O telefone não parava de tocar sempre com alguém reclamando que não conseguia falar, porque de cá, se tentava falar com alguém de lá, que pudesse dar uma ajuda. Só tinha uma linha telefônica. Nem o João Luiz conseguia fazer uma piadinha para amenizar a tensão... Afinal, ele, o João Luiz de Brito Neto, ta era puto com os caras do DOPS, entre outras, ela já tinha aquele episódio das “botinadas” do elevador (depois eu conto).

Às quatro horas, fechou tudo na sede do CNC. Pegaram todas as bagagens, inclusive a do pessoal que estava preso no DOPS, e levaram para a estação do trem. O DOPS contestava, dizendo que “os suspeitos” foram “detidos” e não presos, como nós dizíamos.

Indo a pé, entramos pela Rua dos Gusmões, evitando passar na frente do prédio do DOPS, até chegar à Estação da Luz, que fica a dois quarteirões. No caminho, alguém para num orelhão e pergunta:
- Quem tem uma ficha telefônica? Ficha telefônica era uma moeda com dois canais de um lado e um do outro lado da cara e da coroa da moeda, que se usava para discar de um telefone público (em São Paulo era a Telesp) e naquele tempo, eles funcionavam.
- Com quem ta o telefone do trem?
- Não é do trem, oh! Babaca é da Estação!!!...
- Certo, companheiro, posso refazer a pergunta?
- Pode companheiro (em tom de brincadeira), “a gente entendemos seu colóquio”, pode falar, companheiro:
- Ai óóó... Quem é o xibungo que ta com a porra do telefone do trem! Gargalhada geral... Cá pra nós, estávamos precisando de uma relaxada, mas cineclubista que é cineclubista, não para por aí...
- Aí ó! Companheiro defensor do vernáculo pátrio, já que você falou em “colóquio”, eu ia citar o magnânimo professor Antônio Cândido sobre esta questão do falar do povo, sabe, mas... Alguém interrompe e...
- Afinal com quem está o número do telefone da Estação do trem?
- Falou mano, agora o vernáculo pátrio agradece...
- Para informação geral, o número do telefone está comigo, mas vou logo avisando! Os caras da estação já estão tiriricas com a gente. Também, vocês não param de ligar pra eles, meu...
- Alguém ligou pro DOPS?
- Cê tá maluco, é?... Ligar pro DOPS? Eles te prendem pelo telefone... Lembra do Donga “o chefe da polícia pelo telefone, mandou me avisar...”.Outro canta: O chefe da polícia pelo telefone, manda  te prender... Que música é essa que eu nunca ouvir falar?  Pois é, dizia outro, isso é que dá ficar vendo filme de discoteca, do João Travoltado com a Olivia do tão João. O que qui é isso companheiro?  O Martinho da Vila gravou, meu!

                Seguinte, vamos pra estação e quando começar o embarque vamos dizer que o pessoal foi liberado pela polícia, que já está  vindo. Criamos um clima e nesta confusão, vamos tentar atrasar o trem. Se alguém combinou com quem, não sei, só sei que foi assim que aconteceu.
- E viva Ariano Suassuna!
- Viva, vivaaaa!

Na estação criou-se o clima de chega não chega, alguns cineclubistas ficaram na passarela da estação. Quando o chefe avisava que o trem ia partir, o pessoal que estava lá embaixo na plataforma entrava e saía do trem a toda hora. Quem estava fora da estação, entrava correndo, anunciando a chegada de um cineclubista e com isso, criava-se mais uma confusão com os que estavam na passarela, e estes com quem estava na plataforma e nada do pessoal aparecer.

O chefe da estação já estava ameaçando ligar para a polícia, o “motorneiro” fez soar o apito e o trinado do som ocupou todo o ambiente, anunciando a partida, amargurando corações. Ouviu-se um som de escape de ar, o apito soou novamente, outra “guinchada” de ar acompanhado de um esguicho de fumaça, que se fez ouvir, quando alguns cineclubistas entraram correndo, informando que conseguiram liberar os companheiros presos. Eles estão chegando. Uma explosão de alegria tomou conta de todo mundo que ali estava, vivenciado toda aquela confusão, sabendo ou não o que estava acontecendo.

Já em movimento, os últimos subiram  correndo e entraram no trem, rumo a Bauru, lá vai o trem lotado, no seu “vuc, vuc”. Quem chegou por último ficou sem assento. Sorte que o restaurante do trem, nem sempre ficava lotado, era lá que muitos cineclubista rodiziavam de lugar. Na hora de dormir, porque até Bauru, gastava-se por volta de 12 a 14 horas de viagem, se dormia no chão, entre as poltronas. As cabines estavam todas ou lotadas ou fechadas. O restaurante fechava às 22h. Gastar que era bom e era o que os garçons esperavam, quase ninguém gastava, porque naquela  época, cineclubista era militante;  a imensa maioria  era de  durangos, levava-se marmita, fazia-se farofa, comprava antecipado, em lugares mais baratos. Era um movimento militante... Tempo bom, lê, lê, êêê... Volta mais... Saudade... (salve Lilico, humorista do programa de TV Balança Mais não Cai, com seu bumbo).

Bom, a questão é que todo mundo queria saber o que aconteceu, como aconteceu, porque aconteceu e como foram soltos... Já que os desenhos e as máquinas fotográficas ficaram presos no DOPS, sob a condição de que, caso fosse constatada alguma “atitude irregular”, a responsabilidade recairia sobre os diretores do CNC e da Federação Paulista de Cineclubes que foram liberar os detidos e se responsabilizaram pelos mesmos.

Entre tantas histórias que se contou e que ainda tem para se contar, essa ocupou toda a viagem até Campo Grande, nos intervalos da Jornada, sobraram troféus no Mural pra todo mundo. Disseram até que os policiais contaram que os cineclubistas foram presos porque, além de tudo, eram barbudos, usavam calça boca de sino, bolsa a tira colo, e alguns tinham  o cheiro de um cigarrinho “mal” cheiroso. Mas de tudo isso, e daquela viagem lendária pelo trem da morte, o difícil mesmo foi agüentar o Eufra (Eufraudísio Modesto Filho, considerado hoje, um dos melhores contadores de “causos” do Brasil, violeiro, cantor, compositor, companheiro cineclubista de todas as horas), com aquele seu... Nhão, nhão, nhão, nhão, nhão, nhão... Tentando tocar “Asa Branca” em seu violão desafinado que dava dó.

Diogo Gomes dos Santos
Cineclubista, cineasta, historiador

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