Recorro a ficção para contar alguns episódios que acho significativos da memória da luta dos cineclubes, tanto em defesa da liberdade de expressão, como pelo Cinema Brasileiro. Como não temos um acervo memorial ou algo parecido, até mesmo num texto como este, faltam a informação precisa, por exemplo dos nomes dos cineclubistas que foram detidos pelo DOPS. A homenagem fica genérica, mas a intenção é homenageá-los todos os envolvidos e em consequência, o conjunto do Movimento. Fica o alerta para a necessidade de organização, prevenção e divulgação da memória do cineclubismo.
Boa leitura...
Boa leitura...
A delegação
Capixaba chegou a Sampa umas seis horas adiantada, rumo a 15ª Jornada Nacional
de Cineclubes, que se realizaria em Campo Grande , em 1982. O Conselho Nacional de
Cineclubes – CNC - havia conseguido, junto ao governo do Estado de São Paulo,
passagens de trem até Campo Grande - então pertencente ao Estado do Mato Grosso
-, para as delegações que, para chegarem até lá, tivessem São Paulo como rota.
Os Capixabas
resolveram conhecer a Boca do Lixo, foram ao famoso Bar/Restaurante Soberano e
ao Bar do seu Ferreira, onde em ambos, se reunia a fina flor do cinema paulista
“pornochanchadeiro”, além de críticos, estudantes, pesquisadores, carregadores
de filmes, pretendentes a diretor, produtor, ator, atriz, além das “moças e os
moços” da boca. Eles conheceram também a Polifilmes, uma distribuidora, que
para alguns cineclubistas, apesar de reunir o melhor e maior acervo de 16 mm sobre a história do
cinema mundial, diziam: “só tem cópias velhas, caindo aos pedaços”. No mesmo
prédio, no andar de cima onde ficava a Poli (como também era conhecida a
distribuidora), fica a CIDEF (nunca soube o significado da sigla),
distribuidora do senhor Borghetti, que só distribuía filmes russos, xodó dos
cineclubistas.
Na Rua Vitória,
do lado direito no sentido da Av. São João, conheceram a Triunpho Equipamentos
cinematográficos Ltda, empresa familiar do senhor “Alison” pai, que fabricava
projetores de 35
milímetros (mm) e tinha construído uma versão de um
projeto híbrido, tipo dois em um, 16 e 35 milímetros (mm),
que diziam ser uma maravilha! Tudo bem que não funcionou no Cineclube Bixiga,
mas isso é outra história.
Os Capixabas
também conheceram a filial da Empresa Brasileira de Filmes S.A. – Embrafilme,
que ficava, na época, na esquina das Ruas Triunfo com Vitória. Dobraram a
esquina, do lado esquerdo, sentido da Av. São João, e conheceram a gráfica
Cinelândia, que ficava ao lado da Embrafilme, pela Rua Vitória. Era lá que se
imprimia a maioria do material gráfico dos filmes da Boca; da revista “Cinema
em Close-Up” e vez ou outra, alguma material dos cineclubes.
No quadrilátero
que compreende as Ruas do Triunfo, Vitória, Andradas e a dos Gusmões, existia a
Oficina do Souza, que, consertava, vendia, “gambiarrava” filmes de todos os
tipos e formatos; projetores, lâmpadas, coladeiras, carretel, enfim, de tudo um
pouco desta seara... Mas, naquelas ruas e principalmente na dos Andradas e
Gusmões, os puteiros funcionavam que eram uma beleza, até porque, naquele
tempo, um momento de vadiação com uma daquelas “donas”, a gonorréia era certa,
mas, bastava uma injeção de Penicilina no bumbum ou no braço e pronto, finda a
dorzinha, o cabra já estava pronto para outra. Tempo havia para um ou outro
Capixaba, também renovar os ânimos, mas...
Lá pelas tantas,
entram apavorados na sede do CNC, salas 84 e 85, da Rua do Triunfo, 134,
Edifício Soberano, aonde em todos os andares daquele prédio, que chega até o
12º andar, funcionava uma empresa que tinha alguma ligação com o cinema. Lá
funcionava também a Oficine, empresa mecânica de conserto de projetores e
outros babados, dos cineclubistas João Luiz de Brito Neto e do Cacá Mendes, até
as multinacionais, tipo Columbia; aquela que faturou alto com a distribuição
nacional e internacional de “O Cangaceiro” do Lima Barreto, filme produzido
pela Vera Cruz, cujos lucros, dizem as línguas afiadas “se a Vera Cruz tivesse
recebido a sua parte do lucro que o filme rendeu, a história dela, do Lima
Barreto e porque não do Cinema Brasileiro, seriam outras.
Voltando aos
Capixabas: um deles entrou correndo e apavorado na sala do CNC quase gritando:
- Pessoal, a
policia prendeu o pessoal!!! Todos ficaram paralisados, mudos.
- Foram todos
levados para a delegacia!
- Como é que é?
- Os
cineclubistas foram presos por uns caras à paisana...
- Como assim,
foram presos à paisana? Éééé, como é mesmo o teu nome? Então, conta aí com
calma o que aconteceu.
- E que
estávamos andando por aí... Como já foi dito, até chegarmos ao Largo General
Osório; ai vimos aquele prédio de arquitetura maravilhosa, começamos a
fotografar e aí, o pessoal do cineclube da Arquitetura da UFES, sentou na
calçada e começou a desenhar e fotografar o prédio. De repente, assim do nada
chegaram uns caras, vestidos à paisana, dizendo que eram da polícia e levaram o
pessoal preso. Estão lá... Presos!
- Puta merda,
aquele é o prédio do DOPS – Departamento de Ordem Pública e Social -, do Estado
de São Paulo. É ali onde ficam os presos políticos, as salas de tortura, onde
fica o Fleury (Sérgio Paranhos Fleury), ali é o inferno, é o órgão de repressão
da Ditadura, caralho! Caralho! Três vezes caralho! ... Que horas são?
- Duas horas,
quer dizer quatorze horas.
- Duas horas? Ai
meu Deus, fudeu! O trem parte às quatro e trinta. É o seguinte: Chama o Gouveia
(advogado). Chama o Arnaldo (advogado). Liga pro Goldmam (Alberto Goldmam,
Deputado Estadual), liga também pro Resky (Antônio Resky, vereador). Liga pra
imprensa, fala com Orlando Fassoni da “Folha de São Paulo”; com o Edmar Pereira
do ”Jornal da Tarde”; com a Pola Vartuck do “Estadão”; liga para todos os
jornais. Liga para as rádios... O desespero começou a tomar conta de todo mundo
que estava na sala. Ali, não parava de chegar gente. Todos iriam pegar o trem
da Santos Jundiaí que partia da Estação da luz, rumo a Bauru e de Bauru, fazia
a baldeação e pegava o “Trem da Morte”, que passava por Campo Grande, com
destino a Santa Cruz de La
Sierra , na Bolívia. Corre daqui, corre de lá e a porra do
relógio disparou o tempo...
Chegou o
primeiro informe, o Ricardo (Ricardo Araújo), diretor do CNC (acho que era
vice-presidente) e Secretário da Federação Paulista, que fazia Ciências Sociais
na USP, filho de um general lá de Brasília, foi até o DOPS para saber o que de
fato aconteceu. Ah! O Ricardo era também o cara que, quando precisava redigir
algum documento ou programa de alguma chapa, era só falar com ele, que tirava
da manga, num curtíssimo espaço de tempo. O cara era o cara... Inteligente,
escrevia que era uma coisa... Bom, o Ricardo volta e informa que eles foram
presos porque estavam desenhando e fotografando o prédio, “numa atitude
suspeita”. Resultado: iriam ficar detidos para interrogatório e averiguação.
Ficar “detido para interrogatório, por atividade suspeita”, significava não
saber quando o interrogatório iria acontecer. Podia levar uma hora, um dia, uma
semana, um mês, um ano e até mesmo, nunca mais se saber dos presos. Eles podiam
simplesmente, se escafeder, sumir, de-sa-pa-re-cer...
Atenção pessoal,
o negócio é o seguinte, agora são três e meia: Uma parte do pessoal vai para a
Estação e segura o trem, só partimos todos juntos. Não temos como conseguir
transferir estas passagens para outro dia ou horário. O Gouveia foi com o
presidente da Federação Paulista ao DOPS, tentar liberar os cineclubistas.
Gouveia, António Gouveia Júnior, Jornalista, advogado, cineclubistas, veja mais
sobre ele em: www.cineclubebrasil.com.br foi o advogado dos cineclubes. Ele
cineclubou também advogando, criou Leis, orientou cineclubistas, defendeu,
redigiu Estatutos, Regimentos Internos, enfim, deu forma jurídica e sedimentou
toda a estrutura do Movimento Cineclubista Brasileiro e lá foi tentar explicar
para a polícia da repressão/DOPS quem eram aqueles garotos inocentes e o que
estavam fazendo.
A notícia só
sairá nos jornais do dia seguinte, isso se o texto - denúncia chegar à redação
até às dezesseis horas. O objetivo é liberar os cineclubistas agora, para irem
para a Jornada, caso contrário, a delegação Capixaba, em solidariedade vai
ficar até soltar os companheiros. Então ninguém vai pra Jornada, gritaram uns,
depois outros, depois... Pronto, já tínhamos uma palavra de ordem, discursos
inflamados, uma multidãozinha disposta a enfrentar “os home” da repressão...
O clima estava
muito tenso, fazia um calo da gota. Alguém perguntou:
- Os
companheiros conseguiram falar com algum deputado? Outro dá o informe:
- Ta chegando o
pessoal da Bahia, alguém explica o que está acontecendo para os companheiros? A
delegação baiana neste tempo era só uns gatos pingados, dizia, em outro contexto,
certa personagem, provocando a liderança Soteropolinatona.
- Pessoal,
silêncio, por favor, o companheiro vai dar um informe: Olha pessoal, o chefe da
estação disse que não dá pra atrasar a saída do trem não...
- Caracas meu!
- Algum informe
novo da polícia? Assim, naquele misto de confusão e tensão muito próxima do
caos, procurava-se um encaminhamento que ordenasse os acontecimentos e fôssemos
para a Jornada. Este era, agora, o outro objetivo. O telefone não parava de
tocar sempre com alguém reclamando que não conseguia falar, porque de cá, se
tentava falar com alguém de lá, que pudesse dar uma ajuda. Só tinha uma linha
telefônica. Nem o João Luiz conseguia fazer uma piadinha para amenizar a
tensão... Afinal, ele, o João Luiz de Brito Neto, ta era puto com os caras do
DOPS, entre outras, ela já tinha aquele episódio das “botinadas” do elevador
(depois eu conto).
Às quatro horas,
fechou tudo na sede do CNC. Pegaram todas as bagagens, inclusive a do pessoal
que estava preso no DOPS, e levaram para a estação do trem. O DOPS contestava,
dizendo que “os suspeitos” foram “detidos” e não presos, como nós dizíamos.
Indo a pé,
entramos pela Rua dos Gusmões, evitando passar na frente do prédio do DOPS, até
chegar à Estação da Luz, que fica a dois quarteirões. No caminho, alguém para
num orelhão e pergunta:
- Quem tem uma
ficha telefônica? Ficha telefônica era uma moeda com dois canais de um lado e
um do outro lado da cara e da coroa da moeda, que se usava para discar de um
telefone público (em São
Paulo era a Telesp) e naquele tempo, eles funcionavam.
- Com quem ta o
telefone do trem?
- Não é do trem,
oh! Babaca é da Estação!!!...
- Certo,
companheiro, posso refazer a pergunta?
- Pode
companheiro (em tom de brincadeira), “a gente entendemos seu colóquio”, pode
falar, companheiro:
- Ai óóó... Quem
é o xibungo que ta com a porra do telefone do trem! Gargalhada geral... Cá pra
nós, estávamos precisando de uma relaxada, mas cineclubista que é cineclubista,
não para por aí...
- Aí ó!
Companheiro defensor do vernáculo pátrio, já que você falou em “colóquio”, eu
ia citar o magnânimo professor Antônio Cândido sobre esta questão do falar do
povo, sabe, mas... Alguém interrompe e...
- Afinal com
quem está o número do telefone da Estação do trem?
- Falou mano,
agora o vernáculo pátrio agradece...
- Para
informação geral, o número do telefone está comigo, mas vou logo avisando! Os
caras da estação já estão tiriricas com a gente. Também, vocês não param de
ligar pra eles, meu...
- Alguém ligou
pro DOPS?
- Cê tá maluco, é?...
Ligar pro DOPS? Eles te prendem pelo telefone... Lembra do Donga “o chefe da
polícia pelo telefone, mandou me avisar...”.Outro canta: O chefe da polícia
pelo telefone, manda te prender... Que
música é essa que eu nunca ouvir falar?
Pois é, dizia outro, isso é que dá ficar vendo filme de discoteca, do
João Travoltado com a Olivia do tão João. O que qui é isso companheiro? O Martinho da Vila gravou, meu!
Seguinte,
vamos pra estação e quando começar o embarque vamos dizer que o pessoal foi
liberado pela polícia, que já está
vindo. Criamos um clima e nesta confusão, vamos tentar atrasar o trem.
Se alguém combinou com quem, não sei, só sei que foi assim que aconteceu.
- E viva Ariano
Suassuna!
- Viva, vivaaaa!
Na estação
criou-se o clima de chega não chega, alguns cineclubistas ficaram na passarela
da estação. Quando o chefe avisava que o trem ia partir, o pessoal que estava
lá embaixo na plataforma entrava e saía do trem a toda hora. Quem estava fora
da estação, entrava correndo, anunciando a chegada de um cineclubista e com
isso, criava-se mais uma confusão com os que estavam na passarela, e estes com
quem estava na plataforma e nada do pessoal aparecer.
O chefe da
estação já estava ameaçando ligar para a polícia, o “motorneiro” fez soar o
apito e o trinado do som ocupou todo o ambiente, anunciando a partida,
amargurando corações. Ouviu-se um som de escape de ar, o apito soou novamente,
outra “guinchada” de ar acompanhado de um esguicho de fumaça, que se fez ouvir,
quando alguns cineclubistas entraram correndo, informando que conseguiram
liberar os companheiros presos. Eles estão chegando. Uma explosão de alegria
tomou conta de todo mundo que ali estava, vivenciado toda aquela confusão,
sabendo ou não o que estava acontecendo.
Já em movimento,
os últimos subiram correndo e entraram
no trem, rumo a Bauru, lá vai o trem lotado, no seu “vuc, vuc”. Quem chegou por
último ficou sem assento. Sorte que o restaurante do trem, nem sempre ficava
lotado, era lá que muitos cineclubista rodiziavam de lugar. Na hora de dormir,
porque até Bauru, gastava-se por volta de 12 a 14 horas de viagem, se dormia no chão,
entre as poltronas. As cabines estavam todas ou lotadas ou fechadas. O
restaurante fechava às 22h. Gastar que era bom e era o que os garçons
esperavam, quase ninguém gastava, porque naquela época, cineclubista era militante; a imensa maioria era de
durangos, levava-se marmita, fazia-se farofa, comprava antecipado, em
lugares mais baratos. Era um movimento militante... Tempo bom, lê, lê, êêê...
Volta mais... Saudade... (salve Lilico, humorista do programa de TV Balança
Mais não Cai, com seu bumbo).
Bom, a questão é
que todo mundo queria saber o que aconteceu, como aconteceu, porque aconteceu e
como foram soltos... Já que os desenhos e as máquinas fotográficas ficaram
presos no DOPS, sob a condição de que, caso fosse constatada alguma “atitude irregular”,
a responsabilidade recairia sobre os diretores do CNC e da Federação Paulista
de Cineclubes que foram liberar os detidos e se responsabilizaram pelos mesmos.
Entre tantas
histórias que se contou e que ainda tem para se contar, essa ocupou toda a
viagem até Campo Grande, nos intervalos da Jornada, sobraram troféus no Mural
pra todo mundo. Disseram até que os policiais contaram que os cineclubistas
foram presos porque, além de tudo, eram barbudos, usavam calça boca de sino,
bolsa a tira colo, e alguns tinham o
cheiro de um cigarrinho “mal” cheiroso. Mas de tudo isso, e daquela viagem
lendária pelo trem da morte, o difícil mesmo foi agüentar o Eufra (Eufraudísio
Modesto Filho, considerado hoje, um dos melhores contadores de “causos” do
Brasil, violeiro, cantor, compositor, companheiro cineclubista de todas as
horas), com aquele seu... Nhão, nhão, nhão, nhão, nhão, nhão... Tentando tocar
“Asa Branca” em seu violão desafinado que dava dó.
Diogo Gomes dos
Santos
Cineclubista,
cineasta, historiador
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