O CASO DOS IRMÃOS NAVES NO CINECLUBE DE BAURU
Ao certo, o
ano, temo precisar, mas deve ser 1982, quando o Cineclube de Bauru queria por
queria exibir o filme “O Caso dos Irmãos Naves”, 1967 de Luís Sérgio Person.
Sempre que um cineclube solicitava este filme, nós os encaminhávamos para a
Polifilmes, distribuidora com a qual tínhamos estabelecido parceria e que tinha
duas cópias do filme, uma em estado de exibição não recomendado, devido ao
excesso de uso, já muito riscada, picotada e de um preto e branco bastante desbotado.
A outra, novinha,
acabara de chegar do Laboratório, mas o aluguel desta para cineclube, tinha, um,
porém: o cineclube que alugasse, teria que garantir a restituição de nova
cópia, caso a mesma fosse apreendida, pois era comum, ainda naquela época, a Policia
Federal prender filme, projetor, cineclubista em qualquer parte do país.
Um dos
argumentos apresentado para que a Polifilmes relevasse aquela exigência, com
relação ao cineclube de Bauru, dava conta de que, o plantonista no final de
semana em que o filme foi exibido, era a de que o delegado de plantão era pai de
um dos cineclubistas locais. Mesmo assim, prevaleceu a exigência da
distribuidora.
Tudo
acertado, a divulgação teve boa recepção. No dia e horário da sessão, a sala
ficou pequena para tanta gente que queria ver ou rever o clássico filme, que
aborda um erro jurídico, tema da peça fílmica.
Durante a espera
para o início da sessão, notou-se entre o público, a presença de três figuras
de terno, gravata e óculos escuro. A equipe do cineclube logo juntou ao lado do
projetor de 16mm, montado no meio da sala de projeção. Confabularam e não teve
outra solução, se não exibir o filme conforme anunciado.
Um representante do cineclube foi até a frente da plateia e como manda o figurino, apresentou o filme, contextualizou a época da realização do filme, o tema abordado, teceu algumas palavras sobre o elenco com Raul Cortez, Juca de Oliveira, Anselmo Duarte, John Herbert, Júlia Miranda, Sérgio Hingst, reforçou a importância do diretor que também era autor do filme São Paulo S.A., mas a atenção da plateia estava mesmo voltada para a, aglomeração em torno do projetor.
- O filme tem Certificado de Censura.
Explicavam
os cineclubistas para os Agentes Federais que retrucavam.
- Sim, tem,
mas está vencido. Disse o policial.
- Senhor (explicava
outro cineclubista), os cineclubes podem exibir qualquer filme com Certificado
de Censura vencido, tá na Lei.
- Previsto na
Lei? Que Lei?
Perguntou o
mais carrancudo dos Policiais, embora naquela circunstância, todos eram
carrancudos.
- A Lei
5.536, de 27 de novembro de 1968.
Contra
argumentou com alguma veemência, o cineclubista filho do Delegado de Plantão em
Bauru.
- Depois do
Ato Institucional número 5, de 13 de dezembro de 1968, esta ou qualquer outra
Lei, pouco importa. Prevalece o Ato Institucional do Presidente da República.
O clima
começou a ficar muito mais tenso do que já estava, até que uma voz feminina, da
plateia, sobressaiu sobre as demais.
- Senhores,
como já estamos todos aqui, uns para ver e outros para reverem o filme, acho
que poderíamos assisti-lo e no final, os senhores Federais, cumprem sua
obrigação.
Momentaneamente
um silêncio se fez presente, mas logo uma outra voz cineclubista argumentou que
o cineclube não teria condições de arcar com uma nova cópia do filme junto a
distribuidora, caso a cópia fosse apreendida. É razoável dizer, que poucos ou
quase ninguém entendeu o que estava acontecendo, razão para um novo tumulto tomar
conta do ambiente, até que a maioria dos membros do cineclube, concordaram com
a proposta da voz feminina (uma professora bem quista e assídua frequentadora
do cineclube). Proposta acatada pelo público, mas um dos policiais considerou que
a questão tinha um, porém.
- Onde já se
viu, prender o filme depois de exibido. Não isso não está certo. A prisão é
justamente para que ninguém veja o filme. E quem garante que depois da sessão,
vocês não vão criar nova baderna?
Esta provocação deixou muita gente com sangue
saltando pelos poros, mas novamente e depois de tumultuada discussão, onde
todos falavam ao mesmo tempo, acordou-se com a exibição e no final os policiais
prenderiam a cópia do filme.
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Várias
pessoas se aglomeram novamente em volta do projetor, os policiais aproximaram,
Romildo, membro do cineclube informou aos policiais que o filme estava sendo
rebobinado. O policial perguntou.
- Que
história é essa do “filme está sendo rebobinado”?
- É o
seguinte, o filme é uma sequência de fotografias impressas em uma película,
entende?
Ouve alguns
resmungos sonoros inaudíveis, mas a ideia é que eles acham que entenderam, mas um
dos policiais pediu para ele continua explicando
- Pois é,
imagina você, num filme fotográfico que tem 36 fotografias, cabem numa extensão
de 1 metro e seis centímetros. Um filme de longa-metram como este, tem uma hora
e 32 minutos de duração, deve ter, mais menos uns 800 metros de cumprimento. Por
isso o filme vem acomodado em três carretéis, contendo três partes. É por isso que
ele está sendo rebobinado. Quando o filme é colocado no projetor, ele entra no
início e vai seguindo no sentido final. Por isso, quando termina de exibir, ele
deve ser rebobinado, para o início, nos mesmos carretéis que vieram da
distribuidora.
- Sei,
resmungou o policial.
- Não se
preocupe, a rebobinagem vai demorar uns dez minutos, já, já os senhores poderão
prender a cópia do filme.
Com a cara
de quem não gostou e não entendeu nada, mas deu de entendido, o outro policial
se afastou um pouco, procurou o outro policial seu comparsa, cochicham alguma
coisa e se prostaram em posição de sentido próximo a saída da sala.
Terminado de
rebobinar, Reginaldo fechou a lata e a entregou aos policiais.
- Pronto,
aqui está o filme.
O policial
chefe da operação, tirou do bolso um documento e entregou para Reginaldo.
- Este é o
termo de apreensão do filme. Aí tem todas as informações que vocês precisam
para reclamarem o filme de volta.
Assim que
que os policiais saíram da sala, um clima estranho tomou conta do ambiente, dando
a impressão que o público se apiedou dos irmãos Naves, afinal, acharam que o
Juca de Oliveira e o Raul Cortez, personagens, nunca apanharam tanto num filme
como neste. Até hoje dá dó ver os caras levando porrada. Anselmo Duarte, o
policial do filme, acho, foi a forra com eles. Ops! melhor deixar as metáforas
e licenças poéticas bagaceiras para outra oportunidade. Voltemos ao caso.
Neste
momento, Raul, membro do cineclube, entra afobado na sala de projeção, onde
ainda estão alguns dos outros membros do cineclube.
-
Conseguimos pessoal, Romildo e Romina foram de carona com Luíza, a professora,
para a Rodoviária, vão pegar o último ônibus para São Paulo.
Re-Nee-su-du,
frequentador onipresente do cineclube pergunta.
- Um
momento, por favor. Será que eu estou entendo, o que eu acho que está
acontecendo aqui?
Silencio
geral, olhares de espanto ou de não sei do que está acontecendo para todos os lados,
Re-Nee-su-du continua...
-Deixa ver
se é isso mesmo... não, não, antes disso, me respondam. O que vocês colocaram
dentro daquela lata e entregaram para os policiais?
Novamente o
silêncio reinou entre os presentes
- Vocês são
malucos, é? Assim que os policiais descobrirem...
Naquele
momento os policiais entram de volta na sala gritando, espumando pela boca.
- Cadê o
filme?
Susto e
silêncio nem sempre combinam, mas desta vez aconteceu e assim ficou por alguns
instantes.
- Tá na
lata...
Disse Roque
sem muita convicção.
O outro
policial entregou ostensivamente a lata para Reginaldo.
- Ou vocês
nos entregam o filme agora, ou vai todo mundo preso. Ninguém sai da porra desta
sala!
Enquanto um policial
falava, os outros dois sacaram as armas, e um deles emendou.
- Cadê a porra do filme?
Agora o silêncio
foi sepulcral. Um misto de pânico pode ser visto no rosto dos presentes.
- Senhor,
precisamos conversar?
Disse Re-Nee-su-du,
enquanto um senhor levantou a mão e já foi falando.
- Eu não
tenho nada com isso, eu apenas vir ver o filme.
Enquanto
falava ele rumou em direção a porta de saída.
- É mesmo é?
(Interveio o policial.) Só me faltava essa... porra. Cidadão, pode para aí,
agora mesmo. Você viu o filme, participou da conversa subversiva com esses
cabeludos todos aí. Você está aqui até agora, e o cidadão não tem nada a ver
com isso? Quer ir embora Cidadão? Preste atenção, você é cumplice, cidadão. Sua
presença aqui é de apoio a estes comunistas. Você vai ficar aqui como todo
mundo, e se o filme não aparecer em 30 segundos, vai todo mundo pra delegacia.
O cidadão entendeu?
O
senhorzinho ficou mudo, meio tremulo, nem resmungou.
- O cidadão
entendeu? Sim ou não?
O senhorzinho
continuou mudo
- Eu não
ouvir... o cidadão entendeu ou não entendeu?
- Sssssiiim
- Eu não
ouvi, fale mais alto.
- Sim
senhor, entendi.
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Na
delegacia, o Dr. Romualdo Reis Rocha Roldão, delegado de Plantão, depois de notificado
pelos federais da situação, chamou Reginaldo do lado e perguntou:
- Onde está
meu filho, Reginaldo?
- Seu
Romualdo, o Romildo saiu antes, disse que precisava estudar, acho que tem prova
ou tem que entregar um trabalho, não entendi direito.
- Reginaldo,
você sabe que o Romildo é um relaxado, um vagabundo praticante, não estuda,
vive metido com vocês, estudantes que só pensam em política. Não me venha com
essa. Me diz, onde está o Romildo?
- Eu já
disse...
- Você não
quer que eu mande fechar a porra do cineclube, Reginaldo?
- Não
Senhor.
- Então me
diz porra, onde está o Romildo?
Sem
resposta, o delegado chegou até os federais.
- Senhores,
não temos condições de prender todo mundo, não tem onde colocar tanta gente.
- E os
membros do cineclube?
- Estes eu faço
questão de dar jeito, cabem todos aqui. Deixa comigo!
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Por volta das sete horas da manhã de um domingão, Romildo e Romina, já estavam tomando café na casa do escriba que narra esta história. Sua casa era tida há época como o “hotel Cineclubista” da capital paulistana.
- Depois do
café, tomaram banho, descansaram.
No final da
tarde, conversamos com o Rodolfo, nosso advogado e nos organizamos para
estarmos no primeiro horário da segunda-feira na porta da Polifilmes, para
trocarmos a cópia nova do filme, pela velha.
- Não temos
que revisar a cópia antes de irmos a distribuidora? Perguntou Rodolfo, o
advogado.
- Não
precisa, a cópia está novinha, passou sem dar um pulinho, tá uma maravilha. Só
está sem a lata. Disse Romina
- Não tem
problema, temos lata na Dinafilme.
- Quanto
custa uma lata?
- Não
encuca, o Ricardo é boa gente.
- É que
temos que está lá em Bauru o quanto antes.
- E não é só
isso.
Meio sem
jeito e com muito cuidado a Romina começou a falar
- Sabe o que
é, é que... nossa grana só dá pra comprar as passagens de volta. E se ele
cobrar a lata.
Romildo complementou
- E se ele
cobrar algum valor sobre a cópia velha?
Romina acrescentou.
- Tudo bem,
você disse que ele é boa gente. Mas a Polifilmes é uma empresa comercial.
- Vamos
fazer o seguinte, eu falo com o Ricardo...
- Mas, tem
mais uma coisinha (interveio Romildo), toda a equipe do cineclube está presa na
Delegacia, meu pai vai me matar.
- O pai dele,
o Dr. Romualdo é o Delegado que está de Plantão. Já ameaçou fechar o cineclube,
disse Romina.
- Pois é, os
Federais ainda estão em Bauru, mas já estão querendo trazer todo mundo pro DOPS
da capital.
- Por isso
temos que chegar lá antes do meio dia.
- Quanto
tempo leva daqui até Bauru?
Perguntei.
- Se tudo
correr bem, cinco horas.
Romina, que
até então estava com as feições sorridentes, sua tez agora estava rígida, não
parava de roer as unhas, uma pilha de nervos à flor da pele.
- Vamos ligar
para o gerente da Polifilmes e amanhã cedo trocamos as cópias.
- Tudo bem
quanto a isso, a questão é que, a distribuidora abre às oitos horas, o ônibus
para Bauru sai no mesmo horário e o próximo é só duas horas depois.
- Vocês têm
o telefone do Delegado?
-Tenho sim,
ele é meu pai, disse Romildo.
- Ninguém me
disse isso. Puta merda. Rodolfo pareceu preocupado.
- Você é o
filho do delegado que prendeu todo mundo do cineclube. Isso é diferente, pai Delegado,
filho cineclubista, isso não tem dado muito certo ultimamente.
Visivelmente
irritado, Rodolfo começou a andar de um lado para o outro, enfiou a mão no
bolso e tirou uma cadernetinha pequena, vermelha, foi até o telefone, discou
seis número, esperou um pouco, o telefone tocou uma... duas... três...
quatro... cinco...seis, até que, alguém atendeu o telefone.
- Alô, bom
dia. Desculpa ligar a esta hora. Por favor, gostaria de falar com o Deputado Rafael
Rosa?
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Falei com
o Ricardo, está tudo resolvido, aqui está a cópia do filme.
Disse Rinaldo,
o marcador de filmes da Polifilmes.
Quando estávamos de saída, Rinaldo, meio sem jeito disse.
- A partir
de agora, está suspenso o aluguel do filme para cineclubes.
- Poxa Rinaldo,
fala pro Ricardo mandar fazer outra cópia, o filme saí bastante.
- Você sabe,
nos alugamos este filme para universidades, escolas particulares, clubes recreativos,
empresas e não acontece nada, mas é só alugar para cineclubes e...
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Em 2006, quando
da realização do 8º Fórum de Cineclubes ocorrido em Bauru, depois de uma
reunião de grupos de trabalhos, durante o cafezinho, Romildo e Reginaldo nos
relembrou desta “aventura”, que hoje tem um gostinho de tirar um sarro da “gonorrenta”
Ditadura Civil/Militar.
Em 2020, em plena
Pandemia causada pela COVID-19, diversos cineclubes do país, foram vítimas de
ataques hacker, que invadiram as Live, com música funk muito alta, gritando, palavrões,
ruídos infernais, imagens pornográficas, xingando a presidenta Dilma, o Partido
dos Trabalhadores, na tentativa de derrubar a conexão da internet,
impossibilitando que os cineclubes continuassem suas atividades. Eles invadiam
geralmente no início dos debates. As vezes conseguiam, outras a própria equipe
do cineclube derrubava a Live e convidavam o público para outra chamada.
Os cineclubes
continuam firmes em sua missão civilizatória, contra a barbárie e em favor do
Estado de Direito, das liberdades democráticas e insistir em criar uma tela
privilegiada para o filme brasileiro.
PS: A cópia
do filme nuca foi devolvida a Polifilmes. O Cineclube de Bauru teve outros
problemas com a Censura. A maioria deles continuam cineclubando!
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