sexta-feira, 17 de março de 2023

 

O CASO DOS IRMÃOS NAVES NO CINECLUBE DE BAURU

 

Ao certo, o ano, temo precisar, mas deve ser 1982, quando o Cineclube de Bauru queria por queria exibir o filme “O Caso dos Irmãos Naves”, 1967 de Luís Sérgio Person. Sempre que um cineclube solicitava este filme, nós os encaminhávamos para a Polifilmes, distribuidora com a qual tínhamos estabelecido parceria e que tinha duas cópias do filme, uma em estado de exibição não recomendado, devido ao excesso de uso, já muito riscada, picotada e de um preto e branco bastante desbotado.

A outra, novinha, acabara de chegar do Laboratório, mas o aluguel desta para cineclube, tinha, um, porém: o cineclube que alugasse, teria que garantir a restituição de nova cópia, caso a mesma fosse apreendida, pois era comum, ainda naquela época, a Policia Federal prender filme, projetor, cineclubista em qualquer parte do país.

Um dos argumentos apresentado para que a Polifilmes relevasse aquela exigência, com relação ao cineclube de Bauru, dava conta de que, o plantonista no final de semana em que o filme foi exibido, era a de que o delegado de plantão era pai de um dos cineclubistas locais. Mesmo assim, prevaleceu a exigência da distribuidora.

Tudo acertado, a divulgação teve boa recepção. No dia e horário da sessão, a sala ficou pequena para tanta gente que queria ver ou rever o clássico filme, que aborda um erro jurídico, tema da peça fílmica.

Durante a espera para o início da sessão, notou-se entre o público, a presença de três figuras de terno, gravata e óculos escuro. A equipe do cineclube logo juntou ao lado do projetor de 16mm, montado no meio da sala de projeção. Confabularam e não teve outra solução, se não exibir o filme conforme anunciado.

Um representante do cineclube foi até a frente da plateia e como manda o figurino, apresentou o filme, contextualizou a época da realização do filme, o tema abordado, teceu algumas palavras sobre o elenco com Raul Cortez, Juca de Oliveira, Anselmo Duarte, John Herbert, Júlia Miranda, Sérgio Hingst, reforçou a importância do diretor que também era autor do filme São Paulo S.A., mas a atenção da plateia estava mesmo voltada para a, aglomeração em torno do projetor.

- O filme tem Certificado de Censura.


Explicavam os cineclubistas para os Agentes Federais que retrucavam.

- Sim, tem, mas está vencido. Disse o policial.

- Senhor (explicava outro cineclubista), os cineclubes podem exibir qualquer filme com Certificado de Censura vencido, tá na Lei.

- Previsto na Lei? Que Lei?

Perguntou o mais carrancudo dos Policiais, embora naquela circunstância, todos eram carrancudos.

- A Lei 5.536, de 27 de novembro de 1968.

Contra argumentou com alguma veemência, o cineclubista filho do Delegado de Plantão em Bauru.

- Depois do Ato Institucional número 5, de 13 de dezembro de 1968, esta ou qualquer outra Lei, pouco importa. Prevalece o Ato Institucional do Presidente da República.

O clima começou a ficar muito mais tenso do que já estava, até que uma voz feminina, da plateia, sobressaiu sobre as demais.

- Senhores, como já estamos todos aqui, uns para ver e outros para reverem o filme, acho que poderíamos assisti-lo e no final, os senhores Federais, cumprem sua obrigação.

Momentaneamente um silêncio se fez presente, mas logo uma outra voz cineclubista argumentou que o cineclube não teria condições de arcar com uma nova cópia do filme junto a distribuidora, caso a cópia fosse apreendida. É razoável dizer, que poucos ou quase ninguém entendeu o que estava acontecendo, razão para um novo tumulto tomar conta do ambiente, até que a maioria dos membros do cineclube, concordaram com a proposta da voz feminina (uma professora bem quista e assídua frequentadora do cineclube). Proposta acatada pelo público, mas um dos policiais considerou que a questão tinha um, porém.

- Onde já se viu, prender o filme depois de exibido. Não isso não está certo. A prisão é justamente para que ninguém veja o filme. E quem garante que depois da sessão, vocês não vão criar nova baderna?

 Esta provocação deixou muita gente com sangue saltando pelos poros, mas novamente e depois de tumultuada discussão, onde todos falavam ao mesmo tempo, acordou-se com a exibição e no final os policiais prenderiam a cópia do filme.

_____________________

Várias pessoas se aglomeram novamente em volta do projetor, os policiais aproximaram, Romildo, membro do cineclube informou aos policiais que o filme estava sendo rebobinado. O policial perguntou.

- Que história é essa do “filme está sendo rebobinado”?

- É o seguinte, o filme é uma sequência de fotografias impressas em uma película, entende?

Ouve alguns resmungos sonoros inaudíveis, mas a ideia é que eles acham que entenderam, mas um dos policiais pediu para ele continua explicando

- Pois é, imagina você, num filme fotográfico que tem 36 fotografias, cabem numa extensão de 1 metro e seis centímetros. Um filme de longa-metram como este, tem uma hora e 32 minutos de duração, deve ter, mais menos uns 800 metros de cumprimento. Por isso o filme vem acomodado em três carretéis, contendo três partes. É por isso que ele está sendo rebobinado. Quando o filme é colocado no projetor, ele entra no início e vai seguindo no sentido final. Por isso, quando termina de exibir, ele deve ser rebobinado, para o início, nos mesmos carretéis que vieram da distribuidora.

O policial ficou com a cara meio de taxo, enquanto o cineclubista achou que tinha dado a volta por cima do policial

- Sei, resmungou o policial.

- Não se preocupe, a rebobinagem vai demorar uns dez minutos, já, já os senhores poderão prender a cópia do filme.

Com a cara de quem não gostou e não entendeu nada, mas deu de entendido, o outro policial se afastou um pouco, procurou o outro policial seu comparsa, cochicham alguma coisa e se prostaram em posição de sentido próximo a saída da sala.

Terminado de rebobinar, Reginaldo fechou a lata e a entregou aos policiais.

- Pronto, aqui está o filme.

O policial chefe da operação, tirou do bolso um documento e entregou para Reginaldo.

- Este é o termo de apreensão do filme. Aí tem todas as informações que vocês precisam para reclamarem o filme de volta.

Assim que que os policiais saíram da sala, um clima estranho tomou conta do ambiente, dando a impressão que o público se apiedou dos irmãos Naves, afinal, acharam que o Juca de Oliveira e o Raul Cortez, personagens, nunca apanharam tanto num filme como neste. Até hoje dá dó ver os caras levando porrada. Anselmo Duarte, o policial do filme, acho, foi a forra com eles. Ops! melhor deixar as metáforas e licenças poéticas bagaceiras para outra oportunidade. Voltemos ao caso.

Neste momento, Raul, membro do cineclube, entra afobado na sala de projeção, onde ainda estão alguns dos outros membros do cineclube.

- Conseguimos pessoal, Romildo e Romina foram de carona com Luíza, a professora, para a Rodoviária, vão pegar o último ônibus para São Paulo.

Re-Nee-su-du, frequentador onipresente do cineclube pergunta.

- Um momento, por favor. Será que eu estou entendo, o que eu acho que está acontecendo aqui?

Silencio geral, olhares de espanto ou de não sei do que está acontecendo para todos os lados, Re-Nee-su-du continua...

-Deixa ver se é isso mesmo... não, não, antes disso, me respondam. O que vocês colocaram dentro daquela lata e entregaram para os policiais?

Novamente o silêncio reinou entre os presentes

- Vocês são malucos, é? Assim que os policiais descobrirem...

Naquele momento os policiais entram de volta na sala gritando, espumando pela boca.

- Cadê o filme?

Susto e silêncio nem sempre combinam, mas desta vez aconteceu e assim ficou por alguns instantes.

- Tá na lata...

Disse Roque sem muita convicção.

O outro policial entregou ostensivamente a lata para Reginaldo.

- Ou vocês nos entregam o filme agora, ou vai todo mundo preso. Ninguém sai da porra desta sala!

Enquanto um policial falava, os outros dois sacaram as armas, e um deles emendou.

- Cadê a porra do filme?

Agora o silêncio foi sepulcral. Um misto de pânico pode ser visto no rosto dos presentes.

- Senhor, precisamos conversar?

Disse Re-Nee-su-du, enquanto um senhor levantou a mão e já foi falando.

- Eu não tenho nada com isso, eu apenas vir ver o filme.

Enquanto falava ele rumou em direção a porta de saída.

- É mesmo é? (Interveio o policial.) Só me faltava essa... porra. Cidadão, pode para aí, agora mesmo. Você viu o filme, participou da conversa subversiva com esses cabeludos todos aí. Você está aqui até agora, e o cidadão não tem nada a ver com isso? Quer ir embora Cidadão? Preste atenção, você é cumplice, cidadão. Sua presença aqui é de apoio a estes comunistas. Você vai ficar aqui como todo mundo, e se o filme não aparecer em 30 segundos, vai todo mundo pra delegacia. O cidadão entendeu?

O senhorzinho ficou mudo, meio tremulo, nem resmungou.

- O cidadão entendeu? Sim ou não?

O senhorzinho continuou mudo

- Eu não ouvir... o cidadão entendeu ou não entendeu?

- Sssssiiim

- Eu não ouvi, fale mais alto.

- Sim senhor, entendi.

                                          _____________________

Na delegacia, o Dr. Romualdo Reis Rocha Roldão, delegado de Plantão, depois de notificado pelos federais da situação, chamou Reginaldo do lado e perguntou:

- Onde está meu filho, Reginaldo?

- Seu Romualdo, o Romildo saiu antes, disse que precisava estudar, acho que tem prova ou tem que entregar um trabalho, não entendi direito.

- Reginaldo, você sabe que o Romildo é um relaxado, um vagabundo praticante, não estuda, vive metido com vocês, estudantes que só pensam em política. Não me venha com essa. Me diz, onde está o Romildo?

- Eu já disse...

- Você não quer que eu mande fechar a porra do cineclube, Reginaldo?

- Não Senhor.

- Então me diz porra, onde está o Romildo?

Sem resposta, o delegado chegou até os federais.

- Senhores, não temos condições de prender todo mundo, não tem onde colocar tanta gente.

- E os membros do cineclube?

- Estes eu faço questão de dar jeito, cabem todos aqui. Deixa comigo!

_____________________

 

Por volta das sete horas da manhã de um domingão, Romildo e Romina, já estavam tomando café na casa do escriba que narra esta história. Sua casa era tida há época como o “hotel Cineclubista” da capital paulistana.

- Depois do café, tomaram banho, descansaram.

No final da tarde, conversamos com o Rodolfo, nosso advogado e nos organizamos para estarmos no primeiro horário da segunda-feira na porta da Polifilmes, para trocarmos a cópia nova do filme, pela velha.

- Não temos que revisar a cópia antes de irmos a distribuidora? Perguntou Rodolfo, o advogado.

- Não precisa, a cópia está novinha, passou sem dar um pulinho, tá uma maravilha. Só está sem a lata. Disse Romina

- Não tem problema, temos lata na Dinafilme.

- Quanto custa uma lata?

- Não encuca, o Ricardo é boa gente.

- É que temos que está lá em Bauru o quanto antes.

- E não é só isso.

Meio sem jeito e com muito cuidado a Romina começou a falar

- Sabe o que é, é que... nossa grana só dá pra comprar as passagens de volta. E se ele cobrar a lata.

Romildo complementou

- E se ele cobrar algum valor sobre a cópia velha?

Romina acrescentou.

- Tudo bem, você disse que ele é boa gente. Mas a Polifilmes é uma empresa comercial.

- Vamos fazer o seguinte, eu falo com o Ricardo...

- Mas, tem mais uma coisinha (interveio Romildo), toda a equipe do cineclube está presa na Delegacia, meu pai vai me matar.

- O pai dele, o Dr. Romualdo é o Delegado que está de Plantão. Já ameaçou fechar o cineclube, disse Romina.

- Pois é, os Federais ainda estão em Bauru, mas já estão querendo trazer todo mundo pro DOPS da capital.

- Por isso temos que chegar lá antes do meio dia.

- Quanto tempo leva daqui até Bauru?

Perguntei.

- Se tudo correr bem, cinco horas.

Romina, que até então estava com as feições sorridentes, sua tez agora estava rígida, não parava de roer as unhas, uma pilha de nervos à flor da pele.

- Vamos ligar para o gerente da Polifilmes e amanhã cedo trocamos as cópias.

- Tudo bem quanto a isso, a questão é que, a distribuidora abre às oitos horas, o ônibus para Bauru sai no mesmo horário e o próximo é só duas horas depois.

- Vocês têm o telefone do Delegado?

-Tenho sim, ele é meu pai, disse Romildo.

- Ninguém me disse isso. Puta merda. Rodolfo pareceu preocupado.

- Você é o filho do delegado que prendeu todo mundo do cineclube. Isso é diferente, pai Delegado, filho cineclubista, isso não tem dado muito certo ultimamente.

Visivelmente irritado, Rodolfo começou a andar de um lado para o outro, enfiou a mão no bolso e tirou uma cadernetinha pequena, vermelha, foi até o telefone, discou seis número, esperou um pouco, o telefone tocou uma... duas... três... quatro... cinco...seis, até que, alguém atendeu o telefone.

- Alô, bom dia. Desculpa ligar a esta hora. Por favor, gostaria de falar com o Deputado Rafael Rosa?

___________________

Falei com o Ricardo, está tudo resolvido, aqui está a cópia do filme.

Disse Rinaldo, o marcador de filmes da Polifilmes.  Quando estávamos de saída, Rinaldo, meio sem jeito disse.

- A partir de agora, está suspenso o aluguel do filme para cineclubes.

- Poxa Rinaldo, fala pro Ricardo mandar fazer outra cópia, o filme saí bastante.

- Você sabe, nos alugamos este filme para universidades, escolas particulares, clubes recreativos, empresas e não acontece nada, mas é só alugar para cineclubes e...

____________________________


Em 2006, quando da realização do 8º Fórum de Cineclubes ocorrido em Bauru, depois de uma reunião de grupos de trabalhos, durante o cafezinho, Romildo e Reginaldo nos relembrou desta “aventura”, que hoje tem um gostinho de tirar um sarro da “gonorrenta” Ditadura Civil/Militar.

Em 2020, em plena Pandemia causada pela COVID-19, diversos cineclubes do país, foram vítimas de ataques hacker, que invadiram as Live, com música funk muito alta, gritando, palavrões, ruídos infernais, imagens pornográficas, xingando a presidenta Dilma, o Partido dos Trabalhadores, na tentativa de derrubar a conexão da internet, impossibilitando que os cineclubes continuassem suas atividades. Eles invadiam geralmente no início dos debates. As vezes conseguiam, outras a própria equipe do cineclube derrubava a Live e convidavam o público para outra chamada.

Os cineclubes continuam firmes em sua missão civilizatória, contra a barbárie e em favor do Estado de Direito, das liberdades democráticas e insistir em criar uma tela privilegiada para o filme brasileiro.

PS: A cópia do filme nuca foi devolvida a Polifilmes. O Cineclube de Bauru teve outros problemas com a Censura. A maioria deles continuam cineclubando!



Nenhum comentário: