domingo, 17 de novembro de 2019



BACURAU E A PERSONAGEM COLETIVA

O filme Bacurau se desenvolve sobre estrutura narrativa da personagem coletiva, fator de grande relevância e discussão do cinema, mas de pouca utilização na vasta filmografia do Cinema Nacional, muito influenciado pela narrativa centrada na jornada do herói, aquela onde a trama se estabelece, desenvolve e se resolve, em torno da ação do protagonista de conduta individualista.



É corriqueira a frase: “agora é pessoal”, principalmente no cinema hollywoodiano, quando o protagonista não reconhece nos mecanismos da sociedade a qual está inserido, os meios para amenizar ou mesmo solucionar o seu problema, e então ele parte para resolve a questão a guisa pessoal, situação recorrente dos desígnios da montagem “oculta”, levada a cabo pelo cinema mundial, desde D. W. Griffith, até os dias atuais.


São raras as tentativas de personagens secundários, demoverem o protagonista de seu desejo individual de tudo resolver, como no caso do terceiro filme da série “Harry Poter”, E a Ordem da Fênix", 2007, de Davis Yates, Roteiro de Michael Goldenberg, em que Harry quer ir sozinho a Londres, enfrentar um poderoso adversário e a contragosto, Potter parece se convencer da participação dos amigos, mas ignora os argumentos dos seus comparsas, parte sozinho, mas estes o surpreendem, acompanhando-o. Uma solução pra lá de duvidosa, fruto do debate entre os dois fiéis escudeiros de Potter (Hermione e Rony), que decidem acompanha-lo no enfrentamento final, mas a ação se desenvolve sobre a ótica individualista do protagonista.

O Encouraçado Potemkin (Bronenosets Potemkin), 1925 de Serguei Eisenstein, talvez, seja, ainda hoje, a melhor referência para Bacurau, no que diz respeito a utilização da personagem coletiva, em detrimento da personagem individual, por ser seu diretor e o filme, o germe seminal desse tipo de narrativa no cinema.


Bacurau inicia contextualizando o palco da ação; o sertão de Pernambuco, com imagens que escapam da imaginação que o expectador médio tem sobre o termo “sertão”: lugar, arrido, seco, pouco habitável, onde habita uma certa gente que vivem na extrema pobreza. Ao mesmo tempo o filme apresenta o tema de fundo do conflito que se anuncia, a água. Nem metaforicamente o filme alude ao tema da “seca verde”, embora em forma de matáfora, seja possível, estabelecer alguma relação, com a chuva que vem e molha a terra. No filme ela já está lá, e a terra propicia para o cultivo, intacta permanece, pois falta ao camponês as sementes para o plantio da lavoura de sobrevivência.

A carência material da população da cidadela Bacurau está exposta em cada plano do filme. A miséria é atenuada em forma de “favor político”, "ação paternalista", quando o prefeito, não recebido pela população, deixa medicamentos “indevidos, sem receita médica” e alimentos com prazo de validade vencidos.

Em “Os Sete Samurais”, 1954 de Akira Kurosawa, para se proteger do emitente inimigo que se aproxima, para saquear a colheita do vilarejo, a faminta população daquele lugar contrata samurais, também em situação de miserabilidade, para os defender, o pagamento é dividir a comida escassa, com “Samurais” de conduta repreensível por parte dos moradores. A semelhança com a situação do vilarejo do filme Bacurau é notória. A população aceita ajuda de um ente, ignorando seu passado condenável. Em troca de sua ajuda na defesa da cidade, ele aceita um prato de comida por seus préstimos. A alusão distópica de Bacurau com o Brasil atual, tem colocado o filme no centro do debate, acerca das mazelas brasileiras consagradas pela democracia representativa.


Excluída temporariamente do mapa, Bacurau faz uso da rede social da internet para  se comunicar, sem abandonar de todas as relações comunitárias tradicionais, manifestas no enterro da anciã da cidade, de importância reconhecida por todos, exceto por um desabafo de uma bêbada, figura de forte ligação com a tradição de povoados como Bacurau, e também de figuras insólitas como a do velho violeiro, elemento suportável no convívio do lugar. Estes serão os primeiros a serrarem fileiras na defesa coletiva da cidade e os últimos a se rebelarem.


A defesa da cidade encabeçada por elementos de conduta duvidosa, terminam por fazer dela sua causa e redenção, não só perante a população daquele povoado da tela, também pelo público, fora da tela, cujo conservadorismo, vai sendo rompido pela presença da tecnologia, que parece a tudo legitimar, tanto a ação da comunidade Bacurau, como a resignação da comunidade Brasil.

A inclusão da música “Réquiem para Matraga”, de Geraldo Vandré, peça da trilha sonora do filme “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, 1971 de Roberto Santos, não deixa de ser oportuna homenagem, não só ao filme e seu diretor, mas também ao cantor e compositor. Se em “Sob o Domínio do Medo”, também de 1971, de Sam Peckinpah e em “Matraga”, ambos centram sua ação na redenção do protagonista, já em Bacurau a busca pela redenção é coletiva.


Por sua estrutura coletiva, cada cena de Bacurau, são janelas que se abrem para infinitas reflexões. Ressalto o papel do Museu no enredo do filme, numa cidadezinha dos confins do chamado Brasil profundo, estranha instituição que cuida de coisas mortas, dirá o senso comum, mas viva, como são os museus, capaz de oferecer o futuro, para um lugar do presente, que cultiva no seu passado, um futuro digno. O desdém que os visitantes atribuem a ele, não é tão diferente do tratamento que estas instituições têm merecido da instituição governamental brasileira.




Na cena em que uma personagem está, regando e conversando com as plantas, num perfeito entrosamento com a natureza e daí, similarmente, a justificativa do nu, ao meu ver, desnecessário, quando se pretende alcançar o grande público, pouco justificável para algumas pessoas que viram o filme, mas justificativa para outros, que é justamente este estado de espírito liberto, que possibilita aquele personagem sentir a presença do inimigo. No entanto, com aproximação sorrateira do inimigo, a banda sonora alerta do perigo que se aproxima, quando por três ou quatro vezes, ouve-se o pio da coruja, em seu canto de mau agouro antecipando anuncio dos fatos que logo ocorrerão.


Somente na reta final, quando um forasteiro entra no museu, mais por curiosidade, que seu significado será compreendido. Equivale a ideia tão batida, mas ignorada “sem passado, não tem futuro”. A questão memória nunca foi tão significativa. É como se um velho retrato pregado na parece, desvendasse os sentidos do filme através da fotografia, que no dizer de André Bazin, faz sentido: “a fotografia não cria, como na arte, a eternidade, ela embalsama o tempo”, reaviva no homem, o futuro presente na cena, neste caso, seu desejo de viver do personagem que está dentro do Museu, diante de seu destino. As tranqueiras e velharias que são lá guardas, é por seu tempo a salvaguarda do povoado. O uso do bacamarte seguro com as duas mãos na horizontal, não é um fetiche criado pelo cinema hollywoodiano, é tradição de um Brasil sertanejo, pouco decifrado pelo Brasil litoral.

Na sequência de resolução da trama em Bacurau, com a cena da degola e exposição das cabeças dos inimigos, remete a tristes episódios históricos do país, ato presente na Revolta de Canudos, no massacre do bando de Lampião, na Grota dos angicos, sem falar é claro das degolas de escravos em revoltas contra o sistema escravocrata, ou nos permanentes relatos de prisioneiros, que ao se enfrentarem, degolam uns aos outros e jogam “peladas futebolísticas”, usando como bola, cabeças inimigas. A violência aqui é pura mise-em-scène, fabulário do cotidiano, de um Brasil não tão cordial com os seus que estão fora da tela, mas usado como argumento contra a concorrência mercadológica, da tela cinematográfica, como sendo violenta, argumento sempre usado por agentes defensores do produto estrangeiro, contra produtos fílmicos brasileiros.

Nesta cena como nas demais a violência parece ter a legitimidade que se presencia no dia-a-dia do povo brasileiro, uns contra os outros, mas nunca em confrontos com o sistema. Os atuais governantes ao afirmar o uso da arma como defesa individual, desacredita nos preceitos da ordem vigente, legitima o indivíduo usar da violência para resolver problemas pessoais e banais, na base do “agora é pessoal”, como sugere os filmes da indústria cinematográfica, notadamente norte-americana.


Bacurau visita o ciclo de filmes de cangaço, assim como visita o faroeste, ou filmes de aventuras das mais diversas origens, numa alegoria mercadológica, altamente digerível pelo grande público,  missão que o filme cumpre com competência.

Ainda sobre a cena final, em que o prefeito é montado sobre um jumento, em pêlo, com as mãos amarradas para trás, a boca vedada, espera-se, anuncia o morador da cidade, num auto falante, como se fosse um aviso para além tela, que ele nunca mais volte a cidade ou espera-se que ele encontre seu fim, espetado por espinhos de mandacarus ou coisa que o valha. É inacreditável, que nem na arte, o brasileiro tem sido capaz de punir políticos corruptos com a pena capital. Em se tratando de cinema, depois do filme “Carrie, a Estranha”, 1976, Brian di Palma, nada é impossível para uma personagem sobreviver e voltar para operar sua vingança, que o diga os filmes de faroeste que Bacurau visita.


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