BACURAU E A PERSONAGEM COLETIVA
O
filme Bacurau se desenvolve sobre estrutura narrativa da personagem coletiva,
fator de grande relevância e discussão do cinema, mas de pouca utilização na
vasta filmografia do Cinema Nacional, muito influenciado pela narrativa
centrada na jornada do herói, aquela onde a trama se estabelece, desenvolve e se
resolve, em torno da ação do protagonista de conduta individualista.
É
corriqueira a frase: “agora é pessoal”, principalmente no cinema hollywoodiano,
quando o protagonista não reconhece nos mecanismos da sociedade a qual está
inserido, os meios para amenizar ou mesmo solucionar o seu problema, e então ele parte para resolve a questão a guisa pessoal, situação recorrente dos desígnios da montagem
“oculta”, levada a cabo pelo cinema mundial, desde D. W. Griffith, até os dias
atuais.
São
raras as tentativas de personagens secundários, demoverem o protagonista de seu
desejo individual de tudo resolver, como no caso do terceiro filme da série
“Harry Poter”, E a Ordem da Fênix", 2007, de Davis Yates, Roteiro de Michael
Goldenberg, em que Harry quer ir sozinho a Londres, enfrentar um poderoso
adversário e a contragosto, Potter parece se convencer da participação dos amigos, mas ignora os
argumentos dos seus comparsas, parte sozinho, mas estes o surpreendem, acompanhando-o.
Uma solução pra lá de duvidosa, fruto do debate entre os dois fiéis escudeiros
de Potter (Hermione e Rony), que decidem acompanha-lo no enfrentamento final,
mas a ação se desenvolve sobre a ótica individualista do protagonista.
O Encouraçado Potemkin (Bronenosets Potemkin), 1925 de Serguei Eisenstein, talvez, seja, ainda hoje, a melhor referência para Bacurau, no que diz respeito a utilização da personagem coletiva, em detrimento da personagem individual, por ser seu diretor e o filme, o germe seminal desse tipo de narrativa no cinema.
Bacurau
inicia contextualizando o palco da ação; o sertão de Pernambuco, com imagens que
escapam da imaginação que o expectador médio tem sobre o termo “sertão”: lugar, arrido, seco, pouco habitável, onde habita uma certa gente que vivem na
extrema pobreza. Ao mesmo tempo o filme apresenta o tema de fundo do conflito
que se anuncia, a água. Nem metaforicamente o filme alude ao tema da “seca
verde”, embora em forma de matáfora, seja possível, estabelecer alguma relação,
com a chuva que vem e molha a terra. No filme ela já está lá, e a terra propicia
para o cultivo, intacta permanece, pois falta ao camponês as sementes para o
plantio da lavoura de sobrevivência.
A
carência material da população da cidadela Bacurau está exposta em cada plano do filme. A
miséria é atenuada em forma de “favor político”, "ação paternalista", quando o prefeito, não
recebido pela população, deixa medicamentos “indevidos, sem receita médica” e
alimentos com prazo de validade vencidos.
Em “Os Sete Samurais”, 1954 de Akira Kurosawa, para se proteger do
emitente inimigo que se aproxima, para saquear a colheita do vilarejo, a faminta
população daquele lugar contrata samurais, também em situação de miserabilidade, para os
defender, o pagamento é dividir a comida escassa, com “Samurais” de conduta repreensível por parte dos moradores. A semelhança com a situação do vilarejo do filme Bacurau é notória. A
população aceita ajuda de um ente, ignorando seu passado condenável. Em troca de sua ajuda
na defesa da cidade, ele aceita um prato de comida por seus préstimos. A
alusão distópica de Bacurau com o Brasil atual, tem colocado o filme no centro
do debate, acerca das mazelas brasileiras consagradas pela democracia
representativa.
Excluída
temporariamente do mapa, Bacurau faz uso da rede social da internet para se comunicar, sem abandonar de todas as
relações comunitárias tradicionais, manifestas no enterro da anciã da cidade,
de importância reconhecida por todos, exceto por um desabafo de uma bêbada,
figura de forte ligação com a tradição de povoados como Bacurau, e também de
figuras insólitas como a do velho violeiro, elemento suportável no convívio do
lugar. Estes serão os primeiros a serrarem fileiras na defesa coletiva da
cidade e os últimos a se rebelarem.
A
defesa da cidade encabeçada por elementos de conduta duvidosa, terminam por
fazer dela sua causa e redenção, não só perante a população daquele povoado da
tela, também pelo público, fora da tela, cujo conservadorismo, vai sendo
rompido pela presença da tecnologia, que parece a tudo legitimar, tanto a ação
da comunidade Bacurau, como a resignação da comunidade Brasil.
A
inclusão da música “Réquiem para Matraga”, de Geraldo Vandré, peça da trilha
sonora do filme “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, 1971 de Roberto Santos,
não deixa de ser oportuna homenagem, não só ao filme e seu diretor, mas também
ao cantor e compositor. Se em “Sob o Domínio do Medo”, também de 1971, de Sam
Peckinpah e em “Matraga”, ambos centram sua ação na redenção do protagonista,
já em Bacurau a busca pela redenção é coletiva.
Por
sua estrutura coletiva, cada cena de Bacurau, são janelas que se abrem para infinitas
reflexões. Ressalto o papel do Museu no enredo do filme, numa cidadezinha
dos confins do chamado Brasil profundo, estranha instituição que cuida de coisas mortas, dirá o
senso comum, mas viva, como são os museus, capaz de oferecer o futuro, para um
lugar do presente, que cultiva no seu passado, um futuro digno. O desdém que os visitantes atribuem
a ele, não é tão diferente do tratamento que estas instituições têm merecido da
instituição governamental brasileira.
Na cena em que uma personagem está, regando e conversando com as plantas, num perfeito entrosamento com a natureza e daí, similarmente, a justificativa do nu, ao meu ver, desnecessário, quando se pretende alcançar o grande público, pouco justificável para algumas pessoas que viram o filme, mas justificativa para outros, que é justamente este estado de espírito liberto, que possibilita aquele personagem sentir a presença do inimigo. No entanto, com aproximação sorrateira do inimigo, a banda sonora alerta do perigo que se aproxima, quando por três ou quatro vezes, ouve-se o pio da coruja, em seu canto de mau agouro antecipando anuncio dos fatos que logo ocorrerão.
Somente na reta final, quando um forasteiro entra no museu, mais por curiosidade, que seu significado será compreendido. Equivale a ideia tão batida, mas ignorada “sem passado, não tem futuro”. A questão memória nunca foi tão significativa. É como se um velho retrato pregado na parece, desvendasse os sentidos do filme através da fotografia, que no dizer de André Bazin, faz sentido: “a fotografia não cria, como na arte, a eternidade, ela embalsama o tempo”, reaviva no homem, o futuro presente na cena, neste caso, seu desejo de viver do personagem que está dentro do Museu, diante de seu destino. As tranqueiras e velharias que são lá guardas, é por seu tempo a salvaguarda do povoado. O uso do bacamarte seguro com as duas mãos na horizontal, não é um fetiche criado pelo cinema hollywoodiano, é tradição de um Brasil sertanejo, pouco decifrado pelo Brasil litoral.
Na
sequência de resolução da trama em Bacurau, com a cena da degola e exposição das cabeças
dos inimigos, remete a tristes episódios históricos do país, ato presente na
Revolta de Canudos, no massacre do bando de Lampião, na Grota dos angicos, sem
falar é claro das degolas de escravos em revoltas contra o sistema
escravocrata, ou nos permanentes relatos de prisioneiros, que ao se enfrentarem, degolam uns aos outros e jogam “peladas futebolísticas”,
usando como bola, cabeças inimigas. A violência aqui é pura mise-em-scène, fabulário do cotidiano, de um Brasil não tão cordial com os seus que estão fora da tela, mas usado como argumento contra a concorrência mercadológica, da tela cinematográfica, como sendo violenta, argumento sempre
usado por agentes defensores do produto estrangeiro, contra produtos fílmicos brasileiros.
Nesta
cena como nas demais a violência parece ter a legitimidade que se presencia no
dia-a-dia do povo brasileiro, uns contra os outros, mas nunca em confrontos com
o sistema. Os atuais governantes ao afirmar o uso da arma como defesa
individual, desacredita nos preceitos da ordem vigente, legitima o
indivíduo usar da violência para resolver problemas pessoais e banais, na base do
“agora é pessoal”, como sugere os filmes da indústria cinematográfica,
notadamente norte-americana.
Bacurau
visita o ciclo de filmes de cangaço, assim como visita o faroeste, ou filmes de
aventuras das mais diversas origens, numa alegoria mercadológica, altamente
digerível pelo grande público, missão que o filme cumpre com competência.
Ainda sobre a cena final,
em que o prefeito é montado sobre um jumento, em pêlo, com as mãos amarradas
para trás, a boca vedada, espera-se, anuncia
o morador da cidade, num auto falante, como se fosse um aviso para além tela, que ele nunca mais volte a cidade ou espera-se que ele encontre
seu fim, espetado por espinhos de mandacarus ou coisa que o valha. É inacreditável, que nem na arte,
o brasileiro tem sido capaz de punir políticos corruptos com a pena capital. Em
se tratando de cinema, depois do filme “Carrie, a Estranha”, 1976, Brian di
Palma, nada é impossível para uma personagem sobreviver e voltar para operar
sua vingança, que o diga os filmes de faroeste que Bacurau visita.
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