3º artigo escrito para o DIARI DI CINECLUB, revista independente de cultura cinematográfica e informação, da Federação italiana de cineclubes.
Aqui a versão em italiano.
http://www.cineclubroma.it/images/Diari_di_Cineclub/edizione/diaricineclub_059.pdf
Cineclube Ipiranga: 54 anos de
atividades ininterruptas!
A história do Cineclubismo, no
Brasil, é marcada por diversas iniciativas, geralmente espontâneas, de
cinéfilos e até mesmo de cineastas, ávidos em se aprofundar nos conhecimentos sobre
Cinema. Poucas dessas inciativas, porém, podem se destacar pela longevidade.
O
que reputa ser o Cineclube Ipiranga um dos mais longevos, na história
cineclubista brasileira, é a natureza de sua origem, estar sedimentada na
atividade de colecionadores de filmes. As características que diferenciam um
colecionador, do cinéfilo e do cineclubista são mais transparentes do que
opacas. Todas, porém, trazem consigo os mesmos sentidos amador do verbo amar,
com diria, Dostoievski, da pessoa que ama o que faz.
Todas
ou quase todas as informações sobre as primeiras experiências cineclubistas, no
Brasil, dão conta das etapas que consagraram os métodos utilizados para
identificar um cineclube, entre outras: divulgar a atividade, assistir filmes
em conjunto, debater o filme após a sessão. Sobre isso, afirma Rudá de Andrade:
“... e discutindo sobre
os filmes... reúnem-se na casa de Álvaro Rocha, que colecionava filmes[1]
e lá assistiam sessões como um pequeno clube de cinema...” [ANDRADE, P. 5).
Por
sua vez, André Gatti, confirma os mesmos sentidos das palavras de Rudá:
“O outro local de
reuniões era a casa do colecionador de
filmes[2]
Álvaro Rocha” (GATTI, 2004, p.128).
Ocorre que a ideia de “colecionar
filmes”[3] no Brasil, pelos menos no
meio cineclubista paulista, da década de 1970 para cá, quando a Federação de
Cineclubes se estalou na rua do Triunfo, região que, bem antes do ciclo de
cinema que ali se estabeleceu, tornou-se um dos mais importantes do Cinema
Brasileiro:
[...] “... já era
popularmente conhecida como “Boca do Lixo”, por razões sociais que nada tem a
ver com a atividade cinematográfica” (STERNHEIM e SANTOS, 2017).
Por
lá também circulavam “colecionadores de filmes”[4], constituindo um comércio
“pirata”, para usar um termo atual, de cópias de filmes, que seriam incinerados
ou vendidos para fábrica de vassouras, botões e escovas de dente, devido ao fim
do contrato de exploração comercial dos filmes.
Em
1964, os colecionadores de filmes Archimedes Lombardi, Reynaldo Tomasevick (falecido)
e Luiz Antônio Rabello fundaram o Cineclube Ipiranga, no bairro do mesmo nome,
onde moravam, o local era de fácil acesso, bem servido de bondes, transporte
público da época. O bairro é cortado pelo enigmático Riacho do Ipiranga, que até
então dava nome a quase tudo na região. De suas margens ouviu-se o “Grito do
Ipiranga” gesto simbólico da independência do País (1822), também local do
Museu do Ipiranga. Ali, existiram 13 cinemas, todos com programas duplos,
preços populares e salas com capacidade para até 3 mil espectadores.
“O bairro, até então,
desconhecia as finalidades de um cineclube” (JORNAL IPIRANGA & CAMBUCI,
2006, p. 4)
Os organizadores da atividade cineclubista,
prometiam oferecer à comunidade,
“... uma programação
temática, com filmes polêmicos”, diz Archimedes Lombardi (JORNAL IPIRANGA &
CAMBUCI, 2006, p. 5).
O
cineclube foi inaugurado com exibição, seguida de debate, do filme ‘No Tempo das Diligências’ [Stagecoach], John Ford, 1939, numa
sala cedida pelo Clube Atlético Ipiranga, rua Xavier Curado, 356, com
capacidade para 400 lugares, lotada, que aplaudiu a fala sobre o filme
proferida pelo palestrante Adhemar Carvalhaes, cineclubista, professor e
crítico de cinema.
Durante
os oito primeiros anos, o Cineclube Ipiranga funcionou naquele Clube Atlético e,
de 1974 a 1992, migrou por vários clubes sociais e espaços de ensino público e
privado do bairro, quando fixou atividade na Biblioteca Pública Municipal Genésio
de Almeida Moura, rua Cisplatina, 505, mais conhecida como Biblioteca do
Ipiranga. Nessa fase a transição do cinema analógico para o digital já era
realidade global.
É
nesse período que ocorre a 22ª Jornada Nacional de Cineclubes (1989), tentativa
de sobrevivência do Movimento Cineclubista Brasileiro, no fim do século
passado, quando os cineclubes hibernaram, por mais de uma década. O Brasil começa
a viver a chamada era Collor (sob a Presidência da República de Fernando Collor
de Melo, 1989-1990). No mundo, avançava o Neoliberalismo; caiu o Muro de
Berlim; houve o refluxo dos movimentos sociais, sindicais; as novas tecnologias
consolidavam, peremptoriamente, o fechamento dos cinemas de rua e o surgimento
dos cinemas de shopping. Crise econômica mundial e para outros, o fim da
história.
Nessa
fase do digital, o fator mobilidade associada ao da facilidade, foi benéfica em
função da idade adiantada dos membros do Cineclube Ipiranga. Por outro lado, a
perda da qualidade da imagem em comparação com a resolução, textura, e a profundidade
de campo, inerentes ao cinema analógico, influenciou sobre a atividade do
cineclube. Por serem também colecionadores de filmes de 16 mm, eles decidem
mesclar a programação com exibições nessa bitola. Embora, a relação com o ato
de ver o filme, apreciar a fotografia, ouvir, sentir, se envolver com o
desempenho dos atores e atrizes, a prevalência da dramaturgia sobre a parafernália
tecnológica, justificando cena após cena, na armação e resolução do conflito, permaneceu
naqueles cinéfilos.
Ainda
neste período (1989-2003), o Cineclube Ipiranga é um dos poucos cineclubes sobreviventes
na cidade e no país. Ele mantém duas exibições semanais, uma infantil e a outra
para adultos. Garante sempre a presença de convidados para os debates e, entre
uma sessão e outra, exibições de fitas em 16 mm privilegiavam os filmes
clássicos, até então não digitalizados.
Na
gestão da prefeita Marta Suplicy - PT (2001-2004), em São Paulo, a atividade do
cineclube chama atenção do, então, Secretário Municipal de Cultura, Marco
Aurélio Garcia, que discute a implantação de política pública na área do
cinema, referenciando nas atividades do Ipiranga. Nesse momento teve início em
São Paulo, entre outros assuntos, o debate sobre a criação do que veio a ser, hoje,
a SPCine[5], criada finalmente em 2014,
na gestão do prefeito Fernando Haddad – PT (2013-2016).
Nas
gestões subsequentes à de Marta Suplicy, a discussão sobre a criação da SPCine
contou com firme resistência do, então, Secretário de Cultura, Carlos Augusto
Calil – gestão Gilberto Kassab - PSD (2006-2008)
e em seu segundo mandato de prefeito, então pelo - DEM (2008-2012) –, que cria
as “bibliotecas temáticas”. A do Ipiranga é rebatizada com o nome de “Roberto Santos”,
homenagem a um dos mais importantes cineastas da cidade e do País. O motivo
principal, tanto do tema quanto da homenagem, advém das atividades
desenvolvidas pelo cineclube local.
Criada
a SPCine, em 28 de janeiro de 2014, implanta-se na cidade o Circuito Cultural
de
Cinema[6]. Esta proposta do Centro
Cineclubista de São Paulo[7] torna-se
realidade. A iniciativa é rebatizada com o nome de “Circuito SPCine”, um dos
mais celebrados projetos da empresa. A nota irônica é que, com o surgimento da
empresa, o Cineclube Ipiranga, estranhamente, perde sua sede, depois de mais de
20 anos de atividades somente naquela sala. Este fato marca definitivamente a
diferença de um cineclube para um cinema comercial. A sala da biblioteca em
parceria com a SPCine realiza mensalmente 64 sessões. A parceira da mesma
biblioteca com o Cineclube Ipiranga realizava apenas 8 sessões, mas conseguia no
total mensal, muito mais público do que com a empresa, hoje.
De
1992 até 2015, o Cineclube Ipiranga fez mais de 500 projeções, em 16 mm, além
das realizadas no digital. Foram inúmeras as presenças de convidados especiais
para debates e palestras sobre os filmes, principalmente brasileiros. O
dramaturgo, produtor e cineasta Ary Fernandes (1931 – 2010) criador do pioneiro
seriado de TV brasileiro “O Vigilante
Rodoviário”, esteve com o ator Carlos Miranda, que interpretava o
protagonista, para exibir um episódio dessa série de sucesso nas décadas de
1960 e 1970; o Cônsul da Polônia, levou uma orquestra de seu país, em excursão
pelo Brasil, na abertura da mostra de filmes poloneses; a recuperação do filme
“Corrida em Busca do Amor” (1971), de
Carlos Reinchebach, tido como perdido, que se tornou motivo de grande
celebração pelo público e pela crítica; Anselmo
Duarte debateu “O Pagador de Promessas”
(1962), revelando orgulho e, ao mesmo tempo, tristeza por ainda ser o único
cineasta brasileiro a ter conseguido a Palma de Ouro, do Festival de Cannes, há
mais de meio século.
Todas
as atividades do Cineclube eram gratuitas e a parceria com a Secretaria
Municipal de Cultura implicava na autorização de uso do espaço, para as
exibições[8]. Todos os equipamentos de
16 mm são de propriedade dos membros do cineclube.
Os “heróis” dessa empreitada – Archimedes Lombardi,
membro fundador do cineclube, nasceu na cidade de Santo Anastácio, interior do
Estado de São Paulo. Mudou-se para a capital paulista, onde começou a atuar em cinema,
como fotógrafo de Amácio Mazzaropi[9] e, depois, em várias
produções da “Boca de Cinema” – nome dado aquela área da região central de São
Paulo, onde funcionavam tanto a zona do meretrício, que lhe conferiu o
pejorativo apelido de “Boca do Lixo”, quanto se concentravam produtoras e
distribuidoras de filmes –. Estabeleceu-se como proprietário da Estação Gráfica
Romancini & Lombardi. Em 1992 tornou-se um dos fundadores da Associação
Brasileira de Colecionadores de Filmes, em 16 mm [ABCF], entidade que reúne
colecionadores de todo o Brasil, com a finalidade de catalogar, preservar e
exibir filmes raros, em sessões gratuitas, da qual é o atual presidente.
Lombardi mantém um arquivo de filmes, em película, e DVDs com mais de 5 mil
títulos.
Luiz Antônio Rabello, que
afastou da atividade de colecionador e de membro do cineclube, mas permanece
até hoje frequentador das atividades do cineclube.
Em
1974 o economista, baixista de uma banda de rock'n'roll e colecionador de
filmes Antônio Leão da Silva Neto, nascido
no bairro do Ipiranga, entra para o seleto grupo do Cineclube e intensifica uma
de suas habilidades de cinéfilo: catalogar e manter arquivado em casa: fichas
técnicas e sinopses, contendo endereço do cinema, horário da sessão e
comentário sobre o filme, atividade que mantém até hoje e o consagra como um
dos mais importantes pesquisadores do Cinema Brasileiro, com mais de 10 livros/dicionários,
que são referência para quem ensina, estuda, produz, faz e se envolve com
qualquer atividade cinematográfica no País. “Super-8 no Brasil: Um Sonho de Cinema”, é seu mais recente livro/dicionário,
lançado em fevereiro de 2017.
Antônio Leão é
responsável direto pela recuperação de alguns filmes brasileiros considerados
perdidos, entre eles: “Dominó Negro” (1949),
dirigido por Moacyr Fenelon; “Corrida em
Busca do amor” (1971), de Carlos Reichenbach; “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” (1969), de Glauber
Rocha – deste último faltavam trechos do som, que foram recuperados, a partir
de cópia 16 mm, desse colecionador –, entre tantos outros. Leão é talvez o
único dono de um rolo de filme, provavelmente completo e atribuído a George Méliès,
em película de nitrato de 28 mm, bitola criada pela Pathé, em 1912, (SABADIN, 2009).
Celso Agria integra
a trupe do Cineclube Ipiranga, com uma particularidade rara. Apesar de
continuar a colecionar filmes, ele afirma: “Eu gosto mais da mecânica do cinema,
do que dos filmes em si; com os filmes, em película, o barulhinho do projetor fica
mais interessante”[10]. Todo projetor que ele
compra, modifica, acrescenta uma coisinha ou outra, chegando inclusive a fazer
um modelo próprio. Sua paixão é pelo Pathé Bolex 9,1/5 e 16 mm,[11] sonoro. Volta e meia, ele
brinda os amigos, com uma sessão do 9, 1/5 sonoro, cópia de nitrato, um raro
momento.
Por
conta de suas atividades, os membros do cineclube são muitos procurados para
entrevistas, palestras, motivos de monografias, trabalhos de conclusão de
cursos, e é o mote do filme: “Cineclube
Ipiranga, o último dos 16 mm”, documentário que se encontra em fase de
finalização, dirigido pelo autor deste artigo.
__________________________________________________
Referências
Bibliográficas:
ANDRADE,
Rudá. Cronologia da cultura
cinematográfica no Brasil. Cadernos da Cinemateca nº 1, Fundação Cinemateca
Brasileira. São Paulo: 1962.
GATTI,
André. Org. Ramos, Fernão e MIRANDA,
Luiz Felipe. Enciclopédia do cinema brasileiro. SENAC,
2ª edição. São Paulo: 2004.
SANTOS,
Diogo Gomes; STERNHEIM, Alfredo. O Valor das homenagens, In: artigo sobre
a premiação do Memorial do Cinema Paulista, São Paulo: 2017.
Jornal
“Ipiranga & Cambuci”, São Paulo de todos os tempos. São Paulo: 2006.
SABADIN, Celso. Vocês ainda
não ouviriam nada – A barulhenta história do cinema mudo. Summus Editorial,
3ª edição. São Paulo: 2009.
[1] -
Grifo do Autor
[2] -
Grifo do autor
[3] -
O hábito de colecionar cópias de filmes, pode ser comparado com o de colecionar
objetos de arte. (NOTA DO AUTOR).
[4] - Terminologia
utilizada também, por alguns, como subterfúgio para encobrir um negócio
clandestino, como venda e revenda de cópias dos filmes. (NOTA DO AUTOR).
[5] - SPCine
- Empresa de Cinema e Audiovisual de São Paulo - é uma empresa pública de
economia mista, lotada na Secretaria municipal de Cultura da cidade de São
Paulo, com dotação orçamentária majoritária da Prefeitura, com verba do Governo
do Estado e Federal.
[6] -
A proposta de criação de um “Circuito Cultural de exibição de Cinema no Brasil”
é uma proposição antiga do Movimento Cineclubista Brasileiro, que remonta à
criação da Distribuidora Nacional de Filmes para cineclubes [Dinafilme], desde
sua fundação em 1976. (NOTA DO AUTOR).
[8] - Ao termino deste
artigo, Lombardi anuncia à amigos, que a SPCine os procurou. Expectativa do
Cineclube Ipiranga voltar a funcionar na Sala da Biblioteca Ipiranga.
Aguardamos!
[9] -
Mazzaropi, como era conhecido, tornou-se um fenômeno de bilheteria do Cinema
Brasileiro. Interpretava um único personagem, um caipira inspirado na
literatura do escritor Monteiro Lobato: era ator comediante, oriundo do circo,
era também cantor e produzia seus próprios filmes dos quais era, roteirista,
diretor e distribuidor.
[10] -
Um projetor funcionando sem o filme, o som (barulhinho), é mais estridente,
seco, agudo. Funcionando com o filme o barulhinho é mais harmônico, suave. (NOTA DO
AUTOR)
[11] - Pathé Bolex
9,1/5 é um modelo de projetor, fabricado na Suíça, muito pesado, dividido em
duas partes, a de baixo com motor e amplificador de som. A parte superior com as
engrenagens mecânica de projeção, equipamento cheio de novidades tecnológicas,
para a época. (NOTA DO AUTOR)
Um comentário:
Agradecer pela matéria. Divulgar, publicar matérias sobre o cinema e cineclubes paulistas é importante não só para os amantes,pesquisadores e afins da sétima arte,mas, sobretudo, porque estamos carentes de educação,de luz que nos dê compreensão que as artes podem nos ajudar a ser melhores cidadãos mais humanos a desempenhar papel de construtores sociais.
Que a nossa memória histórica cultural, em todas as áreas, não se perca e louvado seja que trabalha pelo seu registro é preservacao.
Parabéns Diogo
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