quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Cineclube Ipiranga: 54 anos de atividades ininterruptas!



3º artigo escrito para o DIARI DI CINECLUB, revista independente de cultura cinematográfica e informação, da Federação italiana de cineclubes.

Aqui a versão em italiano.
http://www.cineclubroma.it/images/Diari_di_Cineclub/edizione/diaricineclub_059.pdf


Cineclube Ipiranga: 54 anos de atividades ininterruptas!

A história do Cineclubismo, no Brasil, é marcada por diversas iniciativas, geralmente espontâneas, de cinéfilos e até mesmo de cineastas, ávidos em se aprofundar nos conhecimentos sobre Cinema. Poucas dessas inciativas, porém, podem se destacar pela longevidade.

O que reputa ser o Cineclube Ipiranga um dos mais longevos, na história cineclubista brasileira, é a natureza de sua origem, estar sedimentada na atividade de colecionadores de filmes. As características que diferenciam um colecionador, do cinéfilo e do cineclubista são mais transparentes do que opacas. Todas, porém, trazem consigo os mesmos sentidos amador do verbo amar, com diria, Dostoievski, da pessoa que ama o que faz.
Todas ou quase todas as informações sobre as primeiras experiências cineclubistas, no Brasil, dão conta das etapas que consagraram os métodos utilizados para identificar um cineclube, entre outras: divulgar a atividade, assistir filmes em conjunto, debater o filme após a sessão. Sobre isso, afirma Rudá de Andrade:
“... e discutindo sobre os filmes... reúnem-se na casa de Álvaro Rocha, que colecionava filmes[1] e lá assistiam sessões como um pequeno clube de cinema...” [ANDRADE, P. 5).
Por sua vez, André Gatti, confirma os mesmos sentidos das palavras de Rudá:
“O outro local de reuniões era a casa do colecionador de filmes[2] Álvaro Rocha” (GATTI, 2004, p.128).
Ocorre que a ideia de “colecionar filmes”[3] no Brasil, pelos menos no meio cineclubista paulista, da década de 1970 para cá, quando a Federação de Cineclubes se estalou na rua do Triunfo, região que, bem antes do ciclo de cinema que ali se estabeleceu, tornou-se um dos mais importantes do Cinema Brasileiro:
[...] “... já era popularmente conhecida como “Boca do Lixo”, por razões sociais que nada tem a ver com a atividade cinematográfica” (STERNHEIM e SANTOS, 2017).
Por lá também circulavam “colecionadores de filmes”[4], constituindo um comércio “pirata”, para usar um termo atual, de cópias de filmes, que seriam incinerados ou vendidos para fábrica de vassouras, botões e escovas de dente, devido ao fim do contrato de exploração comercial dos filmes.
Em 1964, os colecionadores de filmes Archimedes Lombardi, Reynaldo Tomasevick (falecido) e Luiz Antônio Rabello fundaram o Cineclube Ipiranga, no bairro do mesmo nome, onde moravam, o local era de fácil acesso, bem servido de bondes, transporte público da época. O bairro é cortado pelo enigmático Riacho do Ipiranga, que até então dava nome a quase tudo na região. De suas margens ouviu-se o “Grito do Ipiranga” gesto simbólico da independência do País (1822), também local do Museu do Ipiranga. Ali, existiram 13 cinemas, todos com programas duplos, preços populares e salas com capacidade para até 3 mil espectadores.

“O bairro, até então, desconhecia as finalidades de um cineclube” (JORNAL IPIRANGA & CAMBUCI, 2006, p. 4)
 Os organizadores da atividade cineclubista, prometiam oferecer à comunidade,
“... uma programação temática, com filmes polêmicos”, diz Archimedes Lombardi (JORNAL IPIRANGA & CAMBUCI, 2006, p. 5).
O cineclube foi inaugurado com exibição, seguida de debate, do filme ‘No Tempo das Diligências’ [Stagecoach], John Ford, 1939, numa sala cedida pelo Clube Atlético Ipiranga, rua Xavier Curado, 356, com capacidade para 400 lugares, lotada, que aplaudiu a fala sobre o filme proferida pelo palestrante Adhemar Carvalhaes, cineclubista, professor e crítico de cinema. 

Durante os oito primeiros anos, o Cineclube Ipiranga funcionou naquele Clube Atlético e, de 1974 a 1992, migrou por vários clubes sociais e espaços de ensino público e privado do bairro, quando fixou atividade na Biblioteca Pública Municipal Genésio de Almeida Moura, rua Cisplatina, 505, mais conhecida como Biblioteca do Ipiranga. Nessa fase a transição do cinema analógico para o digital já era realidade global.
É nesse período que ocorre a 22ª Jornada Nacional de Cineclubes (1989), tentativa de sobrevivência do Movimento Cineclubista Brasileiro, no fim do século passado, quando os cineclubes hibernaram, por mais de uma década. O Brasil começa a viver a chamada era Collor (sob a Presidência da República de Fernando Collor de Melo, 1989-1990). No mundo, avançava o Neoliberalismo; caiu o Muro de Berlim; houve o refluxo dos movimentos sociais, sindicais; as novas tecnologias consolidavam, peremptoriamente, o fechamento dos cinemas de rua e o surgimento dos cinemas de shopping. Crise econômica mundial e para outros, o fim da história.
Nessa fase do digital, o fator mobilidade associada ao da facilidade, foi benéfica em função da idade adiantada dos membros do Cineclube Ipiranga. Por outro lado, a perda da qualidade da imagem em comparação com a resolução, textura, e a profundidade de campo, inerentes ao cinema analógico, influenciou sobre a atividade do cineclube. Por serem também colecionadores de filmes de 16 mm, eles decidem mesclar a programação com exibições nessa bitola. Embora, a relação com o ato de ver o filme, apreciar a fotografia, ouvir, sentir, se envolver com o desempenho dos atores e atrizes, a prevalência da dramaturgia sobre a parafernália tecnológica, justificando cena após cena, na armação e resolução do conflito, permaneceu naqueles cinéfilos.
Ainda neste período (1989-2003), o Cineclube Ipiranga é um dos poucos cineclubes sobreviventes na cidade e no país. Ele mantém duas exibições semanais, uma infantil e a outra para adultos. Garante sempre a presença de convidados para os debates e, entre uma sessão e outra, exibições de fitas em 16 mm privilegiavam os filmes clássicos, até então não digitalizados.
Na gestão da prefeita Marta Suplicy - PT (2001-2004), em São Paulo, a atividade do cineclube chama atenção do, então, Secretário Municipal de Cultura, Marco Aurélio Garcia, que discute a implantação de política pública na área do cinema, referenciando nas atividades do Ipiranga. Nesse momento teve início em São Paulo, entre outros assuntos, o debate sobre a criação do que veio a ser, hoje, a SPCine[5], criada finalmente em 2014, na gestão do prefeito Fernando Haddad – PT (2013-2016).
Nas gestões subsequentes à de Marta Suplicy, a discussão sobre a criação da SPCine contou com firme resistência do, então, Secretário de Cultura, Carlos Augusto Calil – gestão Gilberto Kassab - PSD (2006-2008) e em seu segundo mandato de prefeito, então pelo - DEM (2008-2012) –, que cria as “bibliotecas temáticas”. A do Ipiranga é rebatizada com o nome de “Roberto Santos”, homenagem a um dos mais importantes cineastas da cidade e do País. O motivo principal, tanto do tema quanto da homenagem, advém das atividades desenvolvidas pelo cineclube local.
Criada a SPCine, em 28 de janeiro de 2014, implanta-se na cidade o Circuito Cultural de Cinema[6]. Esta proposta do Centro Cineclubista de São Paulo[7] torna-se realidade. A iniciativa é rebatizada com o nome de “Circuito SPCine”, um dos mais celebrados projetos da empresa. A nota irônica é que, com o surgimento da empresa, o Cineclube Ipiranga, estranhamente, perde sua sede, depois de mais de 20 anos de atividades somente naquela sala. Este fato marca definitivamente a diferença de um cineclube para um cinema comercial. A sala da biblioteca em parceria com a SPCine realiza mensalmente 64 sessões. A parceira da mesma biblioteca com o Cineclube Ipiranga realizava apenas 8 sessões, mas conseguia no total mensal, muito mais público do que com a empresa, hoje.
De 1992 até 2015, o Cineclube Ipiranga fez mais de 500 projeções, em 16 mm, além das realizadas no digital. Foram inúmeras as presenças de convidados especiais para debates e palestras sobre os filmes, principalmente brasileiros. O dramaturgo, produtor e cineasta Ary Fernandes (1931 – 2010) criador do pioneiro seriado de TV brasileiro “O Vigilante Rodoviário”, esteve com o ator Carlos Miranda, que interpretava o protagonista, para exibir um episódio dessa série de sucesso nas décadas de 1960 e 1970; o Cônsul da Polônia, levou uma orquestra de seu país, em excursão pelo Brasil, na abertura da mostra de filmes poloneses; a recuperação do filme “Corrida em Busca do Amor” (1971), de Carlos Reinchebach, tido como perdido, que se tornou motivo de grande celebração pelo público e pela crítica;  Anselmo Duarte debateu “O Pagador de Promessas” (1962), revelando orgulho e, ao mesmo tempo, tristeza por ainda ser o único cineasta brasileiro a ter conseguido a Palma de Ouro, do Festival de Cannes, há mais de meio século.

Todas as atividades do Cineclube eram gratuitas e a parceria com a Secretaria Municipal de Cultura implicava na autorização de uso do espaço, para as exibições[8]. Todos os equipamentos de 16 mm são de propriedade dos membros do cineclube.
Os “heróis” dessa empreitada – Archimedes Lombardi, membro fundador do cineclube, nasceu na cidade de Santo Anastácio, interior do Estado de São Paulo. Mudou-se para a capital paulista, onde começou a atuar em cinema, como fotógrafo de Amácio Mazzaropi[9] e, depois, em várias produções da “Boca de Cinema” – nome dado aquela área da região central de São Paulo, onde funcionavam tanto a zona do meretrício, que lhe conferiu o pejorativo apelido de “Boca do Lixo”, quanto se concentravam produtoras e distribuidoras de filmes –. Estabeleceu-se como proprietário da Estação Gráfica Romancini & Lombardi. Em 1992 tornou-se um dos fundadores da Associação Brasileira de Colecionadores de Filmes, em 16 mm [ABCF], entidade que reúne colecionadores de todo o Brasil, com a finalidade de catalogar, preservar e exibir filmes raros, em sessões gratuitas, da qual é o atual presidente. Lombardi mantém um arquivo de filmes, em película, e DVDs com mais de 5 mil títulos.

Luiz Antônio Rabello, que afastou da atividade de colecionador e de membro do cineclube, mas permanece até hoje frequentador das atividades do cineclube.
Em 1974 o economista, baixista de uma banda de rock'n'roll e colecionador de filmes Antônio Leão da Silva Neto, nascido no bairro do Ipiranga, entra para o seleto grupo do Cineclube e intensifica uma de suas habilidades de cinéfilo: catalogar e manter arquivado em casa: fichas técnicas e sinopses, contendo endereço do cinema, horário da sessão e comentário sobre o filme, atividade que mantém até hoje e o consagra como um dos mais importantes pesquisadores do Cinema Brasileiro, com mais de 10 livros/dicionários, que são referência para quem ensina, estuda, produz, faz e se envolve com qualquer atividade cinematográfica no País. “Super-8 no Brasil: Um Sonho de Cinema”, é seu mais recente livro/dicionário, lançado em fevereiro de 2017.

Antônio Leão é responsável direto pela recuperação de alguns filmes brasileiros considerados perdidos, entre eles: “Dominó Negro” (1949), dirigido por Moacyr Fenelon; “Corrida em Busca do amor” (1971), de Carlos Reichenbach; “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” (1969), de Glauber Rocha – deste último faltavam trechos do som, que foram recuperados, a partir de cópia 16 mm, desse colecionador –, entre tantos outros. Leão é talvez o único dono de um rolo de filme, provavelmente completo e atribuído a George Méliès, em película de nitrato de 28 mm, bitola criada pela Pathé, em 1912, (SABADIN, 2009).



Celso Agria integra a trupe do Cineclube Ipiranga, com uma particularidade rara. Apesar de continuar a colecionar filmes, ele afirma: “Eu gosto mais da mecânica do cinema, do que dos filmes em si; com os filmes, em película, o barulhinho do projetor fica mais interessante”[10]. Todo projetor que ele compra, modifica, acrescenta uma coisinha ou outra, chegando inclusive a fazer um modelo próprio. Sua paixão é pelo Pathé Bolex 9,1/5 e 16 mm,[11] sonoro. Volta e meia, ele brinda os amigos, com uma sessão do 9, 1/5 sonoro, cópia de nitrato, um raro momento.

Por conta de suas atividades, os membros do cineclube são muitos procurados para entrevistas, palestras, motivos de monografias, trabalhos de conclusão de cursos, e é o mote do filme: “Cineclube Ipiranga, o último dos 16 mm”, documentário que se encontra em fase de finalização, dirigido pelo autor deste artigo.



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Referências Bibliográficas:
ANDRADE, Rudá. Cronologia da cultura cinematográfica no Brasil. Cadernos da Cinemateca nº 1, Fundação Cinemateca Brasileira. São Paulo: 1962.
GATTI, André. Org. Ramos, Fernão e MIRANDA, Luiz Felipe.  Enciclopédia do cinema brasileiro. SENAC, 2ª edição. São Paulo: 2004.
SANTOS, Diogo Gomes; STERNHEIM, Alfredo. O Valor das homenagens, In: artigo sobre a premiação do Memorial do Cinema Paulista, São Paulo: 2017.
Jornal “Ipiranga & Cambuci”, São Paulo de todos os tempos. São Paulo: 2006.
SABADIN, Celso.  Vocês ainda não ouviriam nada – A barulhenta história do cinema mudo. Summus Editorial, 3ª edição. São Paulo: 2009.


[1] - Grifo do Autor
[2] - Grifo do autor
[3] - O hábito de colecionar cópias de filmes, pode ser comparado com o de colecionar objetos de arte. (NOTA DO AUTOR).
[4] - Terminologia utilizada também, por alguns, como subterfúgio para encobrir um negócio clandestino, como venda e revenda de cópias dos filmes. (NOTA DO AUTOR).
[5] - SPCine - Empresa de Cinema e Audiovisual de São Paulo - é uma empresa pública de economia mista, lotada na Secretaria municipal de Cultura da cidade de São Paulo, com dotação orçamentária majoritária da Prefeitura, com verba do Governo do Estado e Federal.
[6] - A proposta de criação de um “Circuito Cultural de exibição de Cinema no Brasil” é uma proposição antiga do Movimento Cineclubista Brasileiro, que remonta à criação da Distribuidora Nacional de Filmes para cineclubes [Dinafilme], desde sua fundação em 1976. (NOTA DO AUTOR).
7 - Centro Cineclubista de São Paulo, foi criado como um dos suportes da Rearticulação do Movimento Cineclubista Brasileiro, ocorrido em 2003.
[8] - Ao termino deste artigo, Lombardi anuncia à amigos, que a SPCine os procurou. Expectativa do Cineclube Ipiranga voltar a funcionar na Sala da Biblioteca Ipiranga. Aguardamos!
[9] - Mazzaropi, como era conhecido, tornou-se um fenômeno de bilheteria do Cinema Brasileiro. Interpretava um único personagem, um caipira inspirado na literatura do escritor Monteiro Lobato: era ator comediante, oriundo do circo, era também cantor e produzia seus próprios filmes dos quais era, roteirista, diretor e distribuidor.
[10] - Um projetor funcionando sem o filme, o som (barulhinho), é mais estridente, seco, agudo. Funcionando com o filme o barulhinho é mais harmônico, suave. (NOTA DO AUTOR)
[11] - Pathé Bolex 9,1/5 é um modelo de projetor, fabricado na Suíça, muito pesado, dividido em duas partes, a de baixo com motor e amplificador de som. A parte superior com as engrenagens mecânica de projeção, equipamento cheio de novidades tecnológicas, para a época. (NOTA DO AUTOR)

Um comentário:

Aldy Carvalho disse...

Agradecer pela matéria. Divulgar, publicar matérias sobre o cinema e cineclubes paulistas é importante não só para os amantes,pesquisadores e afins da sétima arte,mas, sobretudo, porque estamos carentes de educação,de luz que nos dê compreensão que as artes podem nos ajudar a ser melhores cidadãos mais humanos a desempenhar papel de construtores sociais.
Que a nossa memória histórica cultural, em todas as áreas, não se perca e louvado seja que trabalha pelo seu registro é preservacao.
Parabéns Diogo